Karl Rahner
O sacerdote de amanhã será um homem a quem os adultos se dirigirão, ainda que sociedade burguesa não lhe confiará mais os filhos. Será um homem que suporta, no duplo sentido da palavra, a pesada obscuridade da existência junto aos seus irmãos e às suas irmãs. Mas saberá que a treva tem a sua origem e o seu feliz cumprimento no mistério do amor vitorioso, no absurdo da cruz. Será (diversamente, não será sacerdote) um homem capaz de ouvir, um homem para o qual cada indivíduo é importante ainda que não conte nada na vida social ou na vida política. Será um homem em quem se pode confiar, que exerce ou procura exercer, da melhor maneira possível, uma profissão de louco, a de levar não só os próprios fardos, mas também os dos outros. Um homem que, mesmo tendo todas as possibilidades, não participa da caça desesperada e neurótica ao dinheiro, ao prazer e a todos os outros analgésicos contra a trágica desilusão da existência. Demonstrará, ao invés, com a sua vida, que a livre renúncia, no amor do Ressuscitado, não só é possível, mas é também libertadora.
O sacerdote de amanhã não será
alguém que tira a própria força do prestígio social da Igreja, mas terá a
coragem de fazer sua a não-força social da Igreja. Ele crerá que a vida vem da
morte, que o amor, o altruísmo, a palavra da cruz e a graça de Deus possuem
energias suficientes para realizar a única coisa que no fundo importa: isto é,
que o homem aceite com fé e com esperança a incompreensibilidade do próprio
existir, porque nele reina a incompreensibilidade de Deus, o qual se dá a si
mesmo como salvação e como amor de perdão. O sacerdote de amanhã será um homem
com uma profissão quase injustificável do ponto de vista profano, porque o seu
sucesso mais autêntico desaparecerá sempre no mistério de Deus. Não será mais o
psicoterapeuta vestido com a roupa já fora de moda do mago. Falará à baixa voz,
não pensará poder iluminar com disputas patéticas a obscuridade que pesa sobre
a vida ou de romper o estado de sítio em que encontra a fé.
Com calma deixará que Deus
vença onde ele pessoalmente acabou vencido, verá atuar a graça de Deus também
quando não conseguir mais oferecê-la ao homem com a própria palavra e com o
sacramento em formas aceitáveis para o homem de hoje. Não medirá a potência da
graça pelo número dos que se aproximam do sacramento da penitência e, todavia,
saberá que está totalmente tornado pelo serviço e pela missão que lhe foi
confiada por Deus, embora esteja convencido de que a misericórdia divina pode
agir também sem ele. Em suma: o sacerdote de amanhã será o homem do coração
traspassado e só desta ferida escorrerá a eficácia da sua missão.
Será o homem do coração
traspassado porque terá o papel de reconduzir os outros ao centro mais autêntico
da existência, isto é, ao centro do seu [deles] coração. Com efeito, será
possível chegar até o centro da existência, justamente, ao coração, só se ele e
os outros aceitarem a ferida da incompreensibilidade do amor, a única coisa
capaz de vencer a morte... (...) De fato, o sacerdócio tornar-se-á cada vez
menos uma entidade social óbvia, deverá ser cada vez mais exercido na diáspora
da incredulidade, da insignificância social da Igreja, da inexperimentabitidade
de Deus no mundo (...) De qualquer modo, a era constantiniana está trasmontando
e não só para a Igreja, mas também para cada sacerdote. A sua missão não lhe é
mais confiada por um pequeno Estado confessional, ele não é mais o papa na sua
cidade nem faz mais parte com a obviedade de um tempo do grupo dos notáveis: em
suma, desaparecem os privilégios e o prestígio social. Pouco a pouco fica
somente com a sua essência mais autêntica: ser o homem de Deus, o homo religiosus, aquele que crê, espera
e ama. A situação em que viverá lhe proporá sempre a pergunta: "Es aquilo
que deves ser, ou seja, o homem do coração transfixado, verdadeiro templo de
Deus, e a fonte do Espírito, verdadeira força da tua missão e da autenticidade
das tuas palavras?"
Ora, se o padre de amanhã deve
ser assim (e o é, aliás, se adere às exigências da sua vocação, o é, nas
dimensões mais profundas por graça de Deus), se se encontrar sempre diante de
exigências que o empenham até o espasmo e se perguntar onde pode encontrar o
que em si mesmo não encontra, deve tomar o exemplo ao qual poder olhar com
simplicidade arquetípica: então não poderá fazer senão uma coisa: voltar o
olhar para o Senhor que serve, erguer os olhos para aquele que foi traspassado
e venerar o coração de Cristo. (...) Quando dizemos "coração de
Jesus", evocamos aquele centro de primigênia unidade, incompreensível, mas
justamente por isso óbvia, que se manifesta e se realiza na história de Jesus
de Nazaré, que dá significado a esta história e a cada episódio acontecido
nela: o significado de Deus, da sua incompreensibilidade, do seu amor da vida
que se encontra a si mesma somente passando através da morte (...) Este coração
é suave só se por suavidade se entende aquela santa maturidade do amor que
encontra na morte a própria vitória, que é entendido somente por quem compartilhou
o seu tremendo destino. O sacerdote de amanhã deve encontrar-se com este
coração transpassado. Só assim poderá tornar-se também ele “o homem de coração
transpassado" (...) Quem possui a coragem de experimentar a graça, a coragem
da solidão do coração, da fidelidade, da consciência que não busca recompensas,
a coragem de amar aquele que está mais distante como se fosse o mais próximo,
este descobre o seu mísero coração e começa a entender o que significa
verdadeiramente coração.
* Foi mantido o termo
"sacerdote" porque o autor se refere ao presbítero e ao bispo.
Karl Rahner, "O homem do
coração transpassado" (extraio), no livro Discepoli di Cristo. Roma, Edizioni
Paoline, 1968.
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