O presente trabalho pretende expressar relatos de nossa experiência
mística, religiosa, espiritual a partir do filme americano: “Les misérables”
(1998), dirigido por Bille August, sexta adaptação para o cinema do romance “Os
Miseráveis”, de Victor Hugo, 1862. Descreveremos em que sentido o filme marcou
nossa vida, destacando os recursos utilizados pelo realizador,
contextualizando-o dentro dos conceitos e reflexões que desenvolvemos durante
as aulas da disciplina: “Temas especiais de Comunicação e Pastoral: Cinema e
Pastoral, FAJE – 2020.2”.
O filme gera empatia nos que o assistem, pois é rico em ensinamentos,
valores e deixa claro que o bem sempre vence o mal. É um convite a acreditar na
humanidade, que um ato de bondade gera vários outros e que é possível dar a
volta por cima, chegar ao cume da montanha, vencer apesar das dificuldades.
O pano de fundo para o romance de Victor Hugo é a realidade
político/social do povo francês (Revolução Francesa, 1789 a Revolução da
Primavera dos Povos, 1832-1848), especialmente os pobres, por isso o nome “miseráveis”,
ainda que no decorrer do enredo veremos que essa miséria não se limita a
social. O romance teve mais 50 adaptações para o cinema, televisão ou teatro,
onde se tornou um dos musicais mais visto da história e foi premiado muitas
vezes nas várias formas adaptadas. No Óscar 2013, “Os Miseráveis” (2012) por
exemplo, teve oito indicações e levou três estatuetas: atriz coadjuvante,
mixagem de som e maquiagem.
Analisaremos o filme “Les misérables” (1998), em questão em quatro
partes. Na primeira, vemos que após cumprir 19 anos de prisão com trabalhos
forçados por ter roubado comida, Jean Valjean (Liam Neeson) tem liberdade
condicional e não se apresenta às autoridades de segurança do Estado. Inicialmente,
ele é acolhido por um bispo (Peter Vaughan), que lhe dá comida e abrigo. Porém tanto
rancor havia na sua alma que no meio da noite rouba os talheres e agride seu
benfeitor. Logo Valjean é preso pela polícia com toda aquela prata e é levado
até o bispo, que diz aos policiais ter lhe dado a prataria e ainda pergunta a
Valjean por qual motivo esquecera os castiçais, avaliados em pelo menos dois
mil francos. Este gesto extremamente nobre do religioso devolve a fé que aquele
homem amargurado tinha perdido.
Essa é a primeira cena onde valores, como a misericórdia, são exercidos.
Como Valjean que a partir daquele momento resolveu ser um novo homem, o gesto
daquele bispo nos fala que é preciso confiar mais nas pessoas; que diante de
Deus somos todos iguais, ou seja, seu amor alcança todos os seus filhos; ensinando-nos
ainda que devemos dar outra chance, àqueles que erram. Chama nossa atenção para
o fato de que, também nós podemos promover oportunidade de crescimento para nós
mesmos e para os nossos irmãos; que podemos e devemos fazer a diferença na vida
das pessoas.
Na segunda parte do filme, Valjean aparece vivendo em uma nova cidade há nove
anos, ele é o novo prefeito e principal empresário daquele local. Sua paz acaba,
porém, quando Javert (Geoffrey Rush), um guarda da prisão que segue a lei
inflexivelmente, tem praticamente certeza de que o prefeito é o ex-prisioneiro,
que nunca se apresentou para cumprir as exigências do livramento condicional,
mas ele não consegue provar que o prefeito e Jean Valjean são a mesma pessoa.
Vale salientar que penalidade para esta falta era prisão perpétua.
Nesta parte o enredo nos ensina que podemos dar a volta por cima e que
apostar no bem e que aderir a sua proposta é a melhor saída. Valjean soube
valorizar a oportunidade que a vida lhe deu. E nós, o que fazemos com cada dia,
cada situação, cada oportunidade na vida que Deus nos dá? Por outro lado temos
a imagem de Javert, um escravo da lei, que nos faz recordar o farisaísmo de um
grupo de judeus da antiga Aliança que tomava a lei pela lei. Como seguidores de
Jesus Cristo, não devemos nos esquecer do ensinamento Mestre, ao sinalar que lei
foi feita para o homem, não o contrário (Mc 2,27). Não podemos colocar a lei em
primeiro lugar, mas a vida, a dignidade humana, o amor entre todos. Aliás, esta
é a lei que nos ensina Jesus, a lei do amor, não um amor qualquer, mas o amor
como o d’Ele (Jo 13,34-35).
Na parte terceira, o filme mostra que Fantine (Uma Thurman), uma das
empregadas de Valjean, que tem uma filha, Cosette (Claire Danes), fora do
casamento, que é cuidada por terceiros, é despedida e se vê obrigada a
prostituir-se e é presa. Seu ex-patrão, Valjean, descobre o que acontecera, usa
sua autoridade para libertá-la e a acolhe em sua casa, pois ela está muito
doente. Sentindo que ela pode morrer ele promete cuidar da filha e assim o faz.
Porém, antes de pegar a criança sente-se obrigado a revelar sua identidade para
evitar que um prisioneiro, que acreditavam ser ele, fosse preso no seu lugar;
momento em que também Fantine vem a falecer.
Aqui o filme mostra os atos de
bondade praticados por Valjean, fruto das experiências de misericórdia que ele
experimentou. Ensinando-nos, portanto a também praticar o bem ás pessoas que
estão ao nosso redor. As cenas nos falam de empatia, acolhida, compaixão,
sofrer com a dor do outro. Dá para ver a crise de consciência em Valjean: “revela
sua identidade e é preso, ou a omite e deixa que um inocente miserável morra em
seu lugar?”. A humildade, a simplicidade e o amor afetivo e efetivo são
caminhos seguros que nos levam a prática do bem, da verdade e da justiça. É
nesta parte também onde se plasmam os conceitos de beleza, verdade e bondade
presentes na Via pulchritudinis.
Na quarta e última parte, o longa narra a perseguição obstinada de Javert
a Valjean, que foge com a menina Cosette à Paris, ali, auxiliado por um
carroceiro que ajudara no passado, arruma emprego no colégio interno de freiras,
onde vive com simplicidade com a filha adotiva. Ele deseja que ela se consagre
a Deus naquela congregação, mas seu coração é atraído pelo jovem estudante/insurgente,
Marius Pontmercy (Hans Matheson), que lutava por liberdade democrática, contra
o regime político francês. Inicialmente Valjean resiste, mas logo aceita esse relacionamento,
pois só deseja a felicidade de Cosette. Em meio às lutas armadas, barricadas e
motins gerados pelos movimentos, Valjean tenta fugir à Inglaterra, mas termina por
algumas vezes, cara a cara com Javert, inclusive o salvando das mãos dos
insurgentes. Na última cena desses fatídicos encontros, Valjean parece
deixar-se prender, os dois estão às margens do rio Sena e Javert pede que os
guardas os deixe a sós, tempo em que diante da bondade do perseguido, Javert entrega-lhe
sua carta de liberdade tira a própria vida, jogando-se no rio.
Mais uma vez, o que se vê nesta
parte, é a vitória do bem, os valores humanos resistem mesmo sufocados por
circunstancias difíceis. Nas primeiras cenas, da parte em questão, vemos que
até o menor bem que fazemos terá sua recompensa (Mt 10,42). Depois vemos o amor
desinteressado, gratuito e livre (1Cor 13,1-13) de Valjean para com sua filha
Cosette, ele procurou a partir de sua “conversão” ser um homem honrado, todo
entregado aos valores cristãos, empregando todas as suas forças na realização
do bem. Ele teve oportunidade de tirar a vida daquele que lhe perseguia, mas
não o fez. Na vida isso nos ocorre com frequência, temos nossos desafetos e
muitas vezes podemos praticar o mal e agir contra essas pessoas, porém o
conselho do Mestre Jesus é que amemos e rezemos por nossos inimigos (Mt 5,44).
O amor é mais forte que a morte e foi por falta de amor que Javert se
desesperou e tirou a própria vida, por não compreender um amor que se faz
doação, ele agia em nome da lei escrita no papel, não conseguiu transcrevê-la no
coração.
Outra vez
aludimos a Via pulchiritudinis ao nos
fixarmos no belo que o filme emprega. De fato, pela beleza podemos chegar a
Deus, porque ela desperta em nós o desejo de buscá-lo pela contemplação, e
nesse quesito o filme não deixa a desejar, apesar de o figurino ser bonito e
digno, a beleza que falamos aqui está além daquilo que os olhos podem ver, está
na mensagem de bondade que o longa entrega.
O filme veio de encontro ainda, com o conteúdo apresentado pela
professora Carla que integra a Pastoral Carcerária no Uruguai, bem como os
“pobres, pretos e analfabetos” brasileiros que são vítimas do sistema que os
persegue, prende, extermina em nome de uma lei que mata, com julgamentos
injustos e seletivos, onde os pequenos não têm voz ou vez. O que acontecia na
França do início do século XIX, continua ocorrendo hoje, seja no Uruguai, no
Brasil e em inúmeros países do mundo onde o ser humano é deixado em segundo
lugar ficando em primeiro, os interesses de mercado. Porém é consolador saber
que a justiça de Deus é certa, e se dará no tempo d’Ele. Deus não desampara os
pobres e anuncia bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da
justiça, a quem também, segundo o Evangelho, pertence o reino dos céus (Mt
5,10).
O longa uma ferramenta efetiva que pode ser utilizado nos serviços
pastorais, especialmente junto aos fiéis pobres, alocados nas periferias
geográficas e existenciais, pois sua mensagem é atual, consistente e de fácil
identificação. Ninguém melhor que os pobres para entender dos dramas humanos
tratados no filme, uma vez que sua relação com situações similares não são
teoria, mas pratica de vida.
Definitivamente o caminho para uma
vida com dignidade para todos, passa pelo exercício do amor, única lei capaz de
conseguir fazer com que a humanidade continue sua jornada pela terra sendo de
fato o que é: humana, cujos valores como o bem, o belo e vero sejam máximas
experimentadas por todos e por todas. Talvez o grande mérito do filme é que
convida ajuda humanidade a acreditar na humanidade.
REFERÊNCIA
BÍBLIA de Jerusalém. Nova. ed.
rev. e ampl. 9. reimpr. São Paulo:
Paulus, 2013.
AUGUST, Bille. Les Misérables. Filme,
colorido, 131 min., Estados Unidos, 1998. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=vwNaNuelTls&t=264s>
Acesso em 15 out. 2020.