O dominicano Timothy Radcliffe foi o escolhido para pregar o retiro aos participantes do Sínodo dos Bispos, que se realiza estes dias em Roma. É um magnífico pregador. Hoje, quinta feira ele procedeu sua sexta meditação, cujo texto que segue foi reproduzido no IHU-Notícias desta quinta feira, 05/10/23:
"No final da manhã de hoje, o Padre Radcliffe realizou a sexta e última meditação do retiro que termina à tarde.
Em continuidade com o que foi dito anteriormente, o religioso retomou a sua reflexão sobre a verdade, centrando-se em particular no ´Espírito da verdade`.
´Quaisquer que sejam os conflitos que encontremos no caminho – explica o dominicano, olhando também para as próximas três semanas de trabalho sinodal – temos a certeza disto: o Espírito da verdade nos conduz à verdade total`.
Este não é um caminho fácil, um caminho que inclui também ´ouvir coisas desagradáveis`, como abusos e corrupção na Igreja. ´Um pesadelo`, sublinha o religioso, ´uma verdade vergonhosa` que, no entanto, uma vez enfrentada, ´liberta`.
Em última análise, continua o assistente espiritual, mesmo que os dias do Sínodo sejam dolorosos como as dores do parto, no fim, guiados pelo Espírito Santo, chegaremos a uma ´Igreja renascida`.
E isto é tanto mais necessário quanto mais a sociedade contemporânea foge da realidade: prova disso são aqueles que fecham os olhos às catástrofes ecológicas ou aos milhões de irmãos e irmãs que sofrem, ´crucificados pela pobreza e pela violência`.
Em vez disso, devemos ter a coragem, ´a força da mente` para ver as coisas como elas são, para viver no mundo real, sem ilusões, preconceitos, medos, ideologias, orgulho. Isto significa ser “podado”, como acontece com uma videira para que dê mais frutos.
Padre Radcliffe deixa então espaço para uma memória pessoal: a de sua longa permanência no hospital para uma cirurgia difícil. ´Eu era um doente acamado na enfermaria, sem nada para dar. Eu não conseguia nem orar. Eu dependia de outras pessoas até mesmo para as necessidades mais básicas. Foi uma ´poda` terrível. Mas também foi uma bênção.`
De facto, naquele leito de hospital, o padre dominicano abandonou-se ´ao amor absoluto, livre e imerecido do Senhor`.
É isto, portanto, o que os participantes no Sínodo são chamados a fazer, isto é, a ´abrir os seus corações e as suas mentes à amplitude da verdade divina`, perdendo, num certo sentido, o controlo para ´deixar Deus ser Deus`.
Como Jesus, no Getsêmani, renuncia à gestão da própria vida e a confia ao Pai, explica o Padre Radcliffe, portanto, a Assembleia Sinodal deve ter ´a dinâmica da oração e não um parlamento`, deixando-se ´iluminar, guiada e dirigida pelo Espírito Santo`, livre ´da cultura do controle`. O que não significa ´não fazer nada`, mas sim agir, deixando ´o Espírito nos levar onde nunca pensamos que iríamos`.
Deixar-se guiar pelo Espírito para a verdade, acrescenta o assistente espiritual, significa também confiar no facto de que será o próprio Espírito quem ´gerará novas instituições, novas formas de vida cristã, novos ministérios`, trabalhando criativamente com ´novas formas de ser Igreja que agora não podemos imaginar, mas talvez os jovens possam! Isto inclui a escuta dos jovens nos quais o Senhor vive e fala`.
Neste ponto, o religioso dominicano insiste novamente: a confiança nas novas gerações, explica, é ´uma parte intrínseca da liderança cristã` também porque os jovens ´não estão aqui para ocupar o lugar dos idosos, mas para fazer o que os idosos que eles ainda não conseguem imaginar`".
*****
O frade dominicano e antigo
Mestre da Ordem dos Pregadores, Padre Timothy Peter Joseph Radcliffe, guiou as
meditações para os participantes na Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, que
começa nesta quarta-feira, 4 de outubro, centrada no tema “Em casa em Deus e
Deus em casa em nós”.
Meditação
n.º 1
“Esperar
contra toda esperança”
1° de outubro de 2023
Quando o Santo Padre me pediu
para pregar este retiro, senti-me muito honrado, mas também nervoso. Estou
profundamente consciente das minhas limitações pessoais. Sou velho - branco -
ocidental - e um homem! Não sei o que é pior! Todos estes aspetos da minha
identidade limitam a minha compreensão. Por isso, peço-vos perdão pela
insuficiência das minhas palavras.
Somos todos radicalmente
incompletos e precisamos uns dos outros. Karl Barth, o grande teólogo
protestante dos católicos, escreveu “e/e”. Por exemplo, Escritura e tradição,
fé e obras. Diz-se que lhe chamou “o maldito ‘e’ católico”, “das
verdammte katholische ‘Und’”. Por isso, rezo para que, quando nos ouvirmos
uns aos outros nas próximas semanas e discordarmos, possamos frequentemente
dizer “Sim, e...” em vez de “Não”! É este o caminho sinodal. Claro que, por
vezes, o “Não” também é necessário!
Na segunda leitura da Missa de
hoje, São Paulo diz aos Filipenses: “completai a minha alegria, deixando-vos
guiar pelos mesmos propósitos e pelo mesmo amor, em harmonia buscando a
unidade” (Filipenses 2,2). Estamos aqui juntos porque não estamos unidos no
coração e na mente. A grande maioria dos que participaram no processo sinodal
ficou surpreendida com a alegria. Para muitos, é a primeira vez que a Igreja os
convida a falar da sua fé e da sua esperança. Mas alguns têm medo desta viagem
e do que nos espera. Alguns esperam que a Igreja mude drasticamente, que
tomemos decisões radicais, por exemplo, sobre o papel das mulheres na Igreja.
Outros têm medo precisamente dessas mudanças e receiam que elas apenas conduzam
à divisão, ou mesmo ao cisma. Alguns de vós preferiam mesmo não estar aqui. Um
bispo disse-me que rezou para não ser escolhido para vir aqui. A sua oração foi
atendida. Poderíeis ser como o filho do Evangelho de hoje, que no início não
queria ir para a vinha, mas depois vai!
Nos momentos fundamentais, nos
Evangelhos, ouvimos sempre estas palavras: “não tenhais medo”. São João diz-nos
que “o amor perfeito lança fora o medo”. Comecemos, então, por rezar para que o
Senhor liberte os nossos corações do medo. Para alguns é o medo da mudança,
para outros é o medo de que nada mude. “Mas a única coisa que temos a temer é o
próprio medo” (1).
É claro que todos nós temos
medos, mas São Tomás de Aquino ensinou-nos que a coragem é recusar ser
escravizado pelo medo. Podemos sempre ser sensíveis aos medos dos outros,
sobretudo daqueles de quem discordamos! “Como Abraão, partimos sem saber para
onde vamos” (cf. Hebreus 11,8). Mas se libertarmos o nosso coração do medo, o
caminho será muito melhor do que podemos imaginar.
A meditação sobre a
Transfiguração guiar-nos-á neste retiro. Este é o retiro que Jesus dá aos seus
discípulos mais próximos antes de se aventurarem no primeiro sínodo da vida da
Igreja, quando caminham juntos (syn-hodos) em direção a Jerusalém. Esse
retiro era necessário porque eles tinham medo da viagem que tinham de fazer
juntos. Até então, tinham percorrido todo o norte de Israel. Mas em Cesareia de
Filipe, Pedro confessou que Jesus é o Cristo. Depois Jesus convidou-os a irem
com ele para Jerusalém, onde irá sofrer, morrer e ressuscitará dos mortos. Eles
não conseguem aceitar o convite. Pedro tenta impedi-los. Jesus chama-lhe
“Satanás”, “inimigo”. A pequena comunidade fica paralisada. Então Jesus leva-a
para a montanha. Escutemos o relato de São Marcos sobre o que aconteceu.
“Seis dias depois, Jesus levou
consigo Pedro, Tiago e João e os fez subir a um lugar retirado, no alto de uma
montanha, a sós. Lá, ele foi transfigurado diante deles. Sua roupa ficou muito
brilhante, tão branca como nenhuma lavadeira na terra conseguiria torná-la
assim. Apareceram-lhes Elias e Moisés, conversando com Jesus. Pedro então tomou
a palavra e disse a Jesus: “Rabi, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas:
uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Na realidade, não sabia o
que devia falar, pois eles estavam tomados de medo. Desceu, então, uma nuvem,
cobrindo-os com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu Filho amado.
Escutai-o!” E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém: só Jesus
estava com eles” (Marco 9, 2-8).
Esse retiro lhes dá a coragem e
a esperança para partir. Nem sempre corre tudo bem. Já no início, eles não
podem libertar a criança do espírito maligno. Eles discutem sobre quem é o
maior. Eles entendem mal o Senhor. Mas estão a caminho com uma esperança
frágil.
Assim, também nós nos
preparamos para o Sínodo, fazendo um retiro onde, como os discípulos,
aprendemos a escutar o Senhor. Quando nos pusermos a caminho, daqui a três
dias, seremos muitas vezes como aqueles discípulos, e entender-nos-emos mal uns
aos outros e até discutiremos. Mas o Senhor guiar-nos-á para irmos em frente,
para a morte e ressurreição da Igreja. Peçamos também ao Senhor que nos dê
esperança: a esperança de que este Sínodo conduza a uma renovação da Igreja e
não à divisão; a esperança de que nos aproximemos uns dos outros como irmãos e
irmãs. Esta é a nossa esperança não só para a Igreja Católica, mas também para
todos os nossos irmãos e irmãs batizados. Fala-se de um “inverno ecuménico”.
Nós esperamos uma primavera ecuménica.
Também nos unimos na esperança
pela humanidade. O futuro parece sombrio. A catástrofe ecológica ameaça
destruir a nossa casa. Este verão, os incêndios e as inundações devoraram o
mundo. Pequenas ilhas estão a começar a desaparecer debaixo do mar. Milhões de
pessoas estão nas ruas, fugindo da pobreza e da violência. Centenas de pessoas
afogaram-se no Mediterrâneo, não muito longe daqui. Muitos pais recusam-se a
dar à luz crianças num mundo que parece condenado. Na China, os jovens usam
camisetas onde se lê “somos a última geração”. Juntemo-nos na esperança pela
humanidade, especialmente na esperança pelos jovens.
Não sei quantos pais estão
presentes no Sínodo, mas agradeço-vos por se preocuparem com o nosso futuro.
Depois de um período difícil no Sudão do Sul, na fronteira com o Congo, voei de
volta para a Grã-Bretanha, sentado ao lado de uma criança que gritou sem parar
durante oito horas. Tenho vergonha de admitir que tive pensamentos assassinos!
Mas não há ministério sacerdotal mais maravilhoso do que educar crianças e
tentar abrir as suas mentes e corações à promessa da vida. Os pais e os
professores são ministros da esperança.
Por isso, reunimo-nos na
esperança pela Igreja e pela humanidade. Mas aqui está a dificuldade: temos
esperanças contraditórias! Como podemos então esperar juntos? Nisto somos como
os discípulos. A mãe de Tiago e de João esperava que os seus filhos se
sentassem à esquerda e à direita do Senhor na glória, ocupando assim o lugar de
Pedro; há rivalidades mesmo no círculo íntimo dos amigos de Jesus. Judas
esperava provavelmente uma rebelião que expulsasse os romanos. Alguns deles
talvez esperassem simplesmente não ser mortos. Mas continuaram a caminhar
juntos. Que esperança partilhada podemos ter?
Na Última Ceia, receberam uma
esperança que ultrapassa tudo o que podiam imaginar: o corpo de Cristo e o seu
sangue, a nova aliança, a vida eterna. À luz desta esperança eucarística, todas
as suas esperanças contrastantes devem ter parecido nulas, exceto a de Judas,
que desesperava. É o que São Paulo chama “esperar contra toda esperança” (cf.
Rm 4, 18), a esperança que ultrapassa todas as nossas esperanças.
Também nós estamos reunidos
como os discípulos na Última Ceia, não como uma câmara de debate político que
compete para ganhar. A nossa esperança é eucarística. Tive a minha primeira
experiência do que isto significa em 1993, no Ruanda, quando os problemas
estavam apenas a começar. Tínhamos planeado visitar as nossas irmãs Dominicanas
no norte, mas o embaixador belga disse-nos para ficarmos em casa. O país estava
em chamas. Mas eu era jovem e insensato. Agora sou velho e parvo! Vimos coisas
terríveis nesse dia: uma enfermaria de hospital cheia de crianças pequenas que
tinham perdido membros devido a minas e bombas. Uma criança tinha perdido as
duas pernas, um braço e um olho. O pai estava sentado ao lado dele e chorava.
Fui para o mato chorar, acompanhado por duas crianças, ambas a saltar numa só
perna.
visitar as nossas irmãs Dominicanas no norte,
mas o embaixador belga disse-nos para ficarmos em casa. O país estava em
chamas. Mas eu era jovem e insensato. Agora sou velho e parvo! Vimos coisas
terríveis nesse dia: uma enfermaria de hospital cheia de crianças pequenas que
tinham perdido membros devido a minas e bombas. Uma criança tinha perdido as
duas pernas, um braço e um olho. O pai estava sentado ao lado dele e chorava. Fui
para o mato chorar, acompanhado por duas crianças, ambas a saltar numa só
perna.
Fomos ter com as nossas freiras,
mas o que é que eu podia dizer? Perante uma violência tão sem
sentido, não há palavras. Então lembrei-me das palavras do Senhor: “Fazei isto
em memória de mim”. É-nos confiado algo para fazer. Durante a Última Ceia,
parecia não haver futuro. Não havia nada para além de fracasso, sofrimento e
morte. E nesse momento mais sombrio, Jesus fez o gesto mais esperançoso da
história do mundo: “Isto é o meu corpo, oferecido em sacrifício por vós. Este é
o meu sangue, derramado por vós”. Esta é a esperança que nos chama para além de
qualquer divisão.
Um dos meus irmãos, no leste da
Ucrânia, foi rezar a missa por umas irmãs que estavam a mudar de casa. Estava
tudo empacotado. A única coisa que podiam oferecer como patena era um prato de
plástico vermelho. Escreveu: “Foi assim que Deus nos mostrou que está connosco.
‘Estais sentados numa cave, entre a humidade e o bolor, mas eu estou convosco -
no prato de plástico vermelho duma criança e não numa patena dourada’”. Esta é
a esperança eucarística do atual caminho sinodal. O Senhor está connosco."
A esperança da Eucaristia tem a
ver com o que está para além da nossa imaginação, o livro do Apocalipse:
“Depois disso, vi uma multidão imensa, que ninguém podia contar, gente de todas
as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé diante do trono e do
Cordeiro; vestiam túnicas brancas e traziam palmas na mão. E proclamavam com
voz forte: “A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao
Cordeiro” (Apocalipse 7,9s). É esta a esperança que os discípulos
vislumbraram na montanha, no Senhor transfigurado. Faz com que o conflito entre
as nossas esperanças pareça sem importância, quase absurdo. Se estamos
realmente a caminho do Reino, é realmente importante alinhar-se com os chamados
tradicionalistas ou progressistas? Até as diferenças entre Dominicanos e
Jesuítas se tornam insignificantes! Então escutemo-lo, desçamos da montanha e
continuemos a caminhar com confiança. As maiores dádivas virão daqueles de quem
discordamos, se tivermos a coragem de os ouvir.
No decorrer do nosso caminho
sinodal, perguntar-nos-emos talvez se estamos a concluir alguma coisa. Os meios
de comunicação decidirão provavelmente que se tratou apenas duma perda de
tempo, apenas de palavras. Irão ver se estão a ser tomadas decisões corajosas
sobre quatro ou cinco questões importantes. Mas os discípulos daquele primeiro
sínodo, caminhando em direção a Jerusalém, pareciam não concluir
nada. Até tentaram impedir que o cego Bartimeu fosse curado. Pareciam inúteis.
Quando as grandes multidões famintas se reúnem à volta de Jesus, os discípulos
perguntam ao Senhor: “De onde conseguir, aqui em lugar deserto, pão para saciar
tanta gente?” Jesus pede-lhes o que têm, apenas sete pães e alguns peixes
(cf. Mc 8, 1-10). É mais do que suficiente. Se, neste Sínodo,
dermos generosamente o que temos, será mais do que suficiente. O Senhor da
messe proverá.
Ao lado do nosso convento em
Bagdade há um lar para crianças abandonadas de todas as religiões, dirigido
pelas irmãs da Madre Teresa. Nunca esquecerei a pequena Nura, com cerca de oito
anos, nascida sem braços nem pernas, que costumava alimentar as crianças mais
pequenas com uma colher que segurava com a boca. Podemos perguntar-nos que
significado têm os pequenos atos de bondade numa zona de guerra. Será que fazem
alguma diferença? Não será simplesmente como colocar curativos num corpo em
decomposição? Fazemos pequenos atos e deixamos que o Senhor da messe lhes dê o
fruto que ele deseja. Hoje estamos aqui reunidos na festa de Santa Teresa de
Lisieux. Nascida há 150 anos, ela convida-nos a seguir o seu “pequeno caminho”
que conduz ao Reino. Ela dizia: “Lembrai-vos de que nada é trivial aos olhos de
Deus”.
Em Auschwitz, o judeu italiano
Primo Levi recebia todos os dias um pedaço de pão de Lorenzo. Escreveu: “Creio
que é a Lorenzo que devo o facto de estar hoje vivo; não tanto pela sua ajuda
material, mas por me ter recordado constantemente, com a sua presença, com a
sua maneira fácil e simples de ser bom, que existia ainda um mundo justo fora
do nosso, algo e alguém ainda puro e inteiro, não corrompido e não selvagem
[...]; algo muito mal definido, uma possibilidade remota de bem, pela qual ele
contava, no entanto, preservar-se [...]. Graças a Lorenzo, aconteceu que não me
esqueci de que eu próprio era um homem” (2). Aquela pequena porção de pão
salvou-lhe a alma.
As últimas palavras de São
David, santo padroeiro do País de Gales, foram: “fazei bem as pequenas coisas”.
A nossa esperança é que as pequenas coisas que fizermos neste sínodo deem
frutos muito para além da nossa imaginação. Naquela última noite, Jesus
entregou-se aos discípulos: “Ofereço-vos a mim mesmo”. Durante este Sínodo,
partilhemos não só as nossas palavras e convicções, mas também a nós próprios,
com generosidade eucarística. Se abrirmos os nossos corações uns aos outros,
acontecerão coisas maravilhosas. Os discípulos recolhem todos os pedaços de pão
e de peixe que sobraram depois de terem alimentado cinco mil pessoas. Nada se
perde.
Um último ponto. Pedro tenta
impedir Jesus de ir a Jerusalém, porque isso não faz sentido para ele. É
absurdo ir para lá para ser morto. O desespero não é pessimismo, mas o terror
de que já nada faz sentido. E a esperança não é otimismo, mas confiança de que
tudo o que vivemos, toda a nossa confusão e a nossa dor, serão de alguma forma
vistos como tendo sentido. Temos confiança, como diz São Paulo: “Agora, conheço
apenas em parte, mas, então, conhecerei completamente, como sou conhecido”
(1 Coríntios 13,12).
A violência insensata destrói
todo o significado e mata as nossas almas. Quando São Óscar Romero, arcebispo
de San Salvador, visitou o local de um massacre perpetrado pelo exército
salvadorenho, deparou-se com o corpo de um jovem deitado numa vala: “Era apenas
uma criança, no fundo da vala, com o rosto virado para cima. Viam-se os buracos
das balas, as nódoas negras deixadas pelos tiros, o sangue seco. Tinha os olhos
abertos, como se estivesse a perguntar-se porque estava morto e não
compreendesse” (3). E, no entanto, foi nesse momento que descobriu o sentido da
sua vida e o apelo a abandoná-la. Sim, ele teve medo até ao fim. O seu corpo
morto estava ensopado de suor quando olhou para o homem que estava prestes a
matá-lo. Mas já não era escravo do medo.
Espero que não haja violência
neste sínodo! Mas
provavelmente, perguntar-nos-emos muitas vezes qual é o sentido de tudo isto;
porém se O escutarmos e nos escutarmos uns aos outros, acabaremos por
compreender o caminho a seguir. Este é o nosso testemunho cristão num mundo que
muitas vezes perdeu a fé de que a vida humana tem sentido. Macbeth, de
Shakespeare, afirma que a vida não passa de um “conto feito por um idiota,
cheio de gritos e fúria, sem significado algum” (4). Mas ao rezarmos e
refletirmos juntos sobre as grandes questões que a Igreja e o mundo enfrentam,
damos testemunho da nossa esperança no Senhor que dá sentido a cada vida
humana.
Cada escola cristã é um
testemunho da nossa esperança na “luz que brilha nas trevas, a qual as trevas
não conseguiram dominar” (João 1,5). Em Bagdade, os Dominicanos
fundaram uma academia com o lema “Aqui nenhuma pergunta é proibida”. No meio
duma zona de guerra, a escola testemunha a nossa esperança de que a estupidez
da violência não tenha a última palavra. Homs, na Síria, é uma cidade em grande
parte destruída pela violência sem sentido. Mas ali, no meio das ruínas,
descobrimos uma escola católica. O jesuíta holandês Franz van der Lugt
recusou-se a sair, apesar das ameaças de morte. Foi morto a tiros quando estava
sentado no jardim. Mas encontrámos um jesuíta egípcio idoso que ainda ensinava.
Ele estava a preparar outra geração de crianças para que pudessem continuar a
tentar dar sentido às suas vidas. É este o aspeto da esperança.
Assim, irmãos e irmãs, podemos
ser divididos por diferentes esperanças. Mas se escutarmos o Senhor e se nos
escutarmos uns aos outros, tentando compreender a sua vontade para a Igreja e
para o mundo, estaremos unidos numa esperança que transcende as nossas
divergências e seremos tocados por aquele que Santo Agostinho definiu como a
“beleza tão antiga e tão nova [...] Eu provei-te, e agora estou com fome e sede
de ti. Tu me tocaste, e agora eu queimo com o desejo da tua paz” (5). No
próximo encontro, examinaremos outra maneira em que podemos ser divididos,
através da nossa compreensão do tipo de casa que é a Igreja.
Notas:
(1) Franklin D. Roosevelt
(2) Survival in
Auschwitz, “The Tablet”, 21 gennaio 2006
(3) Scott Wright Oscar
Romero and the Communion of Saints, Orbis New York 2009, p. 37
(4) Macbeth, atto V
scena V
(5) Confessioni,
lib. VII, lettura del Breviario per la sua festa
Meditação n.º 2
Meditação para o retiro sinodal:
“Em casa em Deus e Deus em casa em nós”.
1º de outubro de 2023
Chegamos a este Sínodo com
esperanças contraditórias. Mas isso não deve ser um obstáculo intransponível.
Estamos unidos na esperança da Eucaristia, uma esperança que abraça e
transcende tudo o que desejamos.
Porém, há ainda uma outra fonte
de tensão. A nossa conceção da Igreja como casa é por vezes contraditória.
Todos os seres vivos precisam de uma casa para se desenvolverem. Os peixes
precisam de água e os pássaros precisam de ninhos. Sem uma casa, não
podemos viver. As diferentes culturas têm diferentes conceções do que é uma
casa. O Instrumentum Laboris diz-nos que “a Ásia ofereceu a
imagem da pessoa que descalça os sapatos para atravessar a soleira da porta,
como sinal de humildade para estar preparada para encontrar o outro e Deus; a
Oceânia propôs a imagem do barco; a África insistiu na imagem da Igreja como
família de Deus, capaz de oferecer pertença e acolhimento a todos os seus
membros, em toda a sua variedade” (B 1,2). Mas todas estas imagens mostram que
precisamos de um lugar onde possamos ser aceites e, ao mesmo tempo, desafiados.
Em casa somos afirmados pelo que somos e convidados a ser mais. O lar é o lugar
onde somos conhecidos e amados, onde estamos seguros, mas é também o lugar onde
somos desafiados a embarcar na aventura da fé.
Devemos renovar a Igreja como
uma casa comum se quisermos falar a um mundo que sofre de uma crise devido à
falta de moradia. Estamos consumindo nossa pequena casa planetária. Há mais de
350 milhões de migrantes em movimento, fugindo das guerras e das violências. Milhares
de pessoas morrem cruzando os mares tentando encontrar um lar. Nenhum de nós
pode se sentir completamente em casa se eles não se sentirem. Mesmo nos países
ricos, milhões de pessoas dormem na rua. Os jovens muitas vezes não podem pagar
uma casa. Em todos os lugares há uma terrível falta de casa espiritual. O
individualismo impulsionado, a desintegração da família, as desigualdades cada
vez mais profundas significam que somos atingidos por um tsunami de solidão. Os
suicídios estão em ascensão porque sem um lar, físico e espiritual, não se pode
viver. Amar é voltar para casa a alguém.
O que nos ensina esta cena da
Transfiguração sobre a nossa casa, tanto na Igreja como no nosso mundo
deserdado? Jesus convida seu círculo mais íntimo de amigos a separar-se dele e
desfrutar deste momento de intimidade. Eles também estarão com ele no
Getsémani. Este é o círculo mais íntimo daqueles com quem Jesus se sente mais
confortável. Na montanha, ele lhes concede a visão de sua glória. Pedro quer
agarrar-se a este momento. “Rabi, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas:
uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Chegou e quer que este
momento íntimo dure.
Mas eles ouvem a voz do Pai.
“Escutai-o!”. Devem descer da montanha e caminhar em direção a Jerusalém, sem
saber o que os espera. Serão dispersos e enviados aos confins da terra para
testemunhar a nossa última morada, o Reino. Vemos, portanto, duas conceções de
casa: o círculo íntimo com Jesus na montanha e o apelo à nossa casa definitiva,
o Reino, ao qual todos pertenceremos.
Do mesmo modo, diferentes
conceções da Igreja como casa dividem-nos hoje em dia. Para alguns, esta é
definida pelas suas tradições e devoções antigas, pelas suas estruturas e
linguagem herdadas, pela Igreja em que crescemos e que amamos. Ela dá-nos uma
clara identidade cristã. Para outros, a Igreja atual não parece ser um lar
seguro. É sentida como exclusiva, marginalizando muitas pessoas, as mulheres,
os divorciados e os casados novamente. Para alguns, é demasiado ocidental,
demasiado eurocêntrica. O Instrumentum Laboris também menciona
os gays e as pessoas que vivem em casamentos polígamos. Estas pessoas desejam
uma Igreja renovada na qual se sintam plenamente em casa, reconhecidas,
afirmadas e seguras.
Para alguns, a ideia de um acolhimento
universal, em que todos são aceites independentemente de quem somos, é sentida
como destrutiva da identidade da Igreja. Como numa canção inglesa do século
XIX, “Se todos são alguém, então ninguém é ninguém” [1]; eles acreditam que a
identidade requer fronteiras. Para outros, porém, a abertura está no cerne da
identidade da Igreja. O Papa Francisco disse: “A Igreja é chamada a ser a casa
do Pai, com as portas sempre abertas... onde há lugar para todos, para cada
pessoa com os seus problemas, para ir ao encontro daqueles que sentem
necessidade de retomar o seu caminho de fé” [2].
Esta tensão sempre esteve no
centro da nossa fé, desde que Abraão deixou Ur. No Antigo Testamento, há duas
coisas em perpétua tensão entre si: a ideia da escolha, do povo escolhido de
Deus, do povo com quem Deus habita. Trata-se de uma identidade que é protegida.
Mas há também o universalismo, a abertura a todas as nações, uma identidade
ainda por descobrir.
A identidade cristã é conhecida
e desconhecida ao mesmo tempo, dada e a ser procurada. São João diz:
“Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que
seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele,
porque o veremos tal como ele é” (1Jo 3,1-2). Sabemos quem somos, mas não
sabemos quem seremos.
Para alguns de nós, a identidade
cristã é sobretudo dada, a Igreja que conhecemos e amamos. Para outros, a
identidade cristã é sempre provisória, a caminho do Reino em que todos os muros
cairão. As duas são necessárias! Se apenas insistirmos no facto que a
nossa identidade é dada – isso é que significa ser católico – corremos o risco
de nos tornarmos uma seita. Se nos limitarmos a sublinhar a aventura em direção
a uma identidade ainda por descobrir, arriscamo-nos a tornar-nos um vago
movimento cristão. Mas a Igreja é sinal e sacramento da unidade de toda a
humanidade em Cristo (LG 1) ao ser ambas as coisas. Nós habitamos na montanha e
saboreamos a glória agora. Mas caminhamos em direção a Jerusalém, o primeiro
sínodo da Igreja.
Como viver esta tensão
necessária? Toda a teologia nasce da tensão que dobra o arco para lançar a
flecha. Esta tensão está no centro do Evangelho de São João. Deus faz de nós a
sua casa: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; meu Pai o amará, e nós
viremos e faremos nele a nossa morada” (14,23). Mas Jesus promete-nos também a
nossa casa em Deus: “Na casa de meu Pai há muitas moradas. Não fosse assim, eu
vos teria dito. Vou preparar um lugar para vós” (Jo 14,2).
Quando pensamos na Igreja como
uma casa, alguns de nós pensam principalmente em Deus que vem à nossa casa, e
outros em nós que vamos para casa em Deus. Ambas são verdadeiras. Precisamos de
entrar em sintonia com aqueles que pensam de forma diferente. Nós apreciamos o
círculo íntimo na montanha, mas descemos e caminhamos em direção a Jerusalém,
errantes e sem casa. “Escutai-o”.
Assim, em primeiro lugar, Deus
faz a sua casa connosco. O Verbo faz-se carne num judeu palestiniano do
primeiro século, educado nos usos e costumes do seu povo. O Verbo faz-se carne
em cada uma das nossas culturas. Nas pinturas italianas da Anunciação, vemos
belas casas de mármore, com janelas que dão para oliveiras e jardins de rosas e
lírios. Os pintores holandeses e flamengos mostram Maria com um forno quente,
bem agasalhada para evitar o frio. Seja qual for a vossa casa, Deus vem habitar
nela. Durante trinta anos de silêncio, Deus habitou em Nazaré: um lugar
secundário e insignificante. Natanael exclamou com desgosto: “De Nazaré pode
sair algo de bom?" (Jo 1,46). Filipe responde-lhe simplesmente: “Vem e
vê!”.
Todas as nossas casas são
Nazaré, onde Deus habita. São Charles de Foucauld dizia: “Deixai que Nazaré
seja o vosso modelo, em toda a sua simplicidade e abertura... A vida de Nazaré
pode ser vivida em qualquer lugar. Vivei-a onde for mais útil ao vosso próximo”
[3]. Onde quer que estejamos e independentemente do que tenhamos feito, Deus
vem encontrar-nos: “Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e
abrir a porta, eu entrarei na sua casa e tomaremos a refeição, eu com ele e ele
comigo” (Ap 3,20).
Guardemos com carinho, então, os
lugares onde encontrámos o Emanuel. “Deus connosco”. Amamos as liturgias onde
vislumbrámos a beleza divina, as igrejas da nossa infância, as devoções
populares. Eu amo a grande abadia beneditina da minha escola, onde pela
primeira vez senti as portas do céu abertas. Cada um de nós tem o seu próprio
Monte Tabor, no qual vislumbrou a glória. Precisamos disso. Por isso, quando as
liturgias são alteradas ou as igrejas demolidas, as pessoas sentem uma grande
dor, como se a sua casa na Igreja fosse destruída. Como Pedro, queremos
permanecer.
Cada Igreja local é uma casa
para Deus. A nossa Mãe Maria apareceu em Inglaterra, em Walsingham, o grande
santuário medieval, em Lourdes, em Guadalupe no México, em Częstochowa na
Polónia, em La Vang no Vietname e em Donglü na China. Não há competição mariana.
Em Inglaterra dizemos: “A boa notícia é que Deus te ama. A má notícia é que ele
ama todos os outros também”. Santo Agostinho disse: “Deus ama cada um de nós
como se fosse um só” [4]. Na Basílica de Nossa Senhora de África, em Argel,
está inscrito: « Priez pour nous et pour les Musulmans »,
“Rezem por nós e pelos muçulmanos”.
Muitas vezes os sacerdotes
consideram o caminho sinodal mais difícil de abraçar. Nós, sacerdotes, cuidamos
destes lugares de culto e celebramos as liturgias. Os sacerdotes precisam de um
forte sentido de identidade, dum esprit de corps. Mas quem seremos
nós nesta Igreja libertada do clericalismo? Como pode o clero abraçar uma
identidade que não seja clerical? Este é um grande desafio para uma Igreja
renovada. Abracemos sem medo uma nova compreensão fraterna do sacerdócio
ministerial! Talvez possamos descobrir como esta perda de identidade é, na
verdade, uma parte intrínseca da nossa identidade sacerdotal. É uma vocação que
vai para além de qualquer identidade, pois “nem sequer se manifestou o que
seremos” (1Jo 3,2).
Deus constrói agora a sua casa
em lugares que o mundo despreza. O nosso irmão dominicano Frei Betto descreve
como Deus se tornou a sua casa numa prisão no Brasil. Alguns dominicanos foram
presos pela sua oposição à ditadura (1964-1985). Betto escreve: “No dia de
Natal, festa do regresso de Deus a casa, a alegria é irreprimível. A Noite de
Natal na prisão... Agora toda a prisão canta, como se o nosso canto, feliz e
livre, devesse ressoar pelo mundo inteiro. As mulheres cantam na sua secção e
nós aplaudimos... Todos aqui sabem que é Natal, que alguém está a renascer. E
com o nosso canto, testemunhamos que também nós renascemos para lutar por um
mundo sem lágrimas, sem ódio e sem opressão. É impressionante ver estes rostos
jovens encostados às grades e a cantar o seu amor. Inesquecível. Não é um
espetáculo para os nossos juízes, nem para o ministério público, nem para a
polícia que nos prendeu. Para eles, a beleza desta noite seria intolerável. Os
torturadores temem um sorriso, mesmo que seja um sorriso fraco”.
É assim que vislumbramos a
beleza do Senhor no nosso Monte Tabor, onde, como Pedro, queremos montar as
nossas tendas. Ótimo! Mas “escutai-o!”. Desfrutemos desse momento e depois
saiamos do monte e caminhemos em direção a Jerusalém. Temos de nos tornar, de
certo modo, pessoas sem-abrigo. “As raposas têm tocas e os pássaros do céu têm
ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. (Lucas 9,58).
Caminham em direção a Jerusalém, a cidade santa onde reside o nome de Deus. Mas
lá Jesus morre fora dos muros para o bem de todos os que vivem fora dos muros,
tal como Deus se revelou ao seu povo no deserto, fora do acampamento. James
Alison escreveu: “Deus está no meio de nós como um relegado” [5]. “Por isso
também Jesus sofreu do lado de fora da porta, para, com seu sangue, santificar
o povo. Vamos, portanto, sair ao seu encontro, fora do acampamento, carregando
a sua humilhação” (Hebreus 12,12s).
O Arcebispo Carlos Aspiroz da
Costa escreveu à Família Dominicana quando era Mestre: “Fora do acampamento,
entre todos os ‘outros’ relegados para um lugar fora do acampamento, é onde
encontramos Deus. A itinerância requer um passo fora da instituição, das
perceções e das crenças culturalmente condicionadas, porque é ‘fora do campo’
que encontramos um Deus que não pode ser controlado. É ‘fora do campo’ que
encontramos o Outro que é diferente e descobrimos quem somos e o que devemos
fazer” [6]. É saindo que chegamos a uma casa onde “não há mais judeu ou grego,
escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus”
(Gálatas 3,26).
Na década de 1980, refletindo
sobre a resposta da Igreja à AIDS, visitei um hospital em Londres. O médico
disse-me que havia um jovem que procurava um padre chamado Timothy. Pela providência
de Deus, consegui ungi-lo pouco antes de morrer. Ele pediu para ser enterrado
na Catedral de Westminster, o centro do catolicismo na Inglaterra. Ele estava
cercado pela gente comum que vinha àquela Missa durante a semana, bem como por
pacientes de AIDS, enfermeiras, médicos e amigos gays. Aquele que estivera na
periferia, por causa da sua doença, da sua orientação sexual e especialmente
porque morrera, estava no centro. Ele estava cercado por aqueles para quem a
Igreja era casa e por aqueles que normalmente nunca entrariam numa igreja.
A nossa vida se nutre de
tradições e devoções queridas. Se elas se perdem, lamentamos. Mas devemos
também recordar todos aqueles que ainda não se sentem em casa na Igreja: as
mulheres que não se sentem reconhecidas num patriarcado de velhos homens
brancos como eu! Pessoas que sentem que a Igreja é demasiado ocidental,
demasiado latina, demasiado colonial. Temos de caminhar em direção a uma Igreja
onde elas já não estejam à margem, mas no centro.
Quando Thomas Merton se tornou
católico, descobriu “Deus, esse centro que está em todo o lado e cuja
circunferência não está em lado nenhum, enquanto me encontra”. Renovar a Igreja
é, portanto, como cozer pão. Juntam-se as bordas da massa no centro e
espalha-se o centro até às bordas, enchendo-o de oxigénio. Faz-se o pão
invertendo a distinção entre as bordas e o centro, fazendo o pão de Deus, cujo
centro está em todo o lado e cuja circunferência não está em lado nenhum,
encontrando-nos.
Uma última palavra muito breve.
Várias vezes, durante a preparação deste Sínodo, foi feita a pergunta: “Mas
como é que podemos estar em casa na Igreja com o horrível escândalo dos abusos
sexuais?” Para muitos, foi a gota de água que fez transbordar o copo. Fizeram
as malas e foram-se embora. Fiz esta pergunta numa reunião de diretores de
escolas católicas na Austrália, onde a Igreja foi terrivelmente desfigurada por
este escândalo. Como é que eles puderam permanecer? Como puderam estar ainda em
casa?
Um deles citou Charles Carretto
(1910-1988), um Pequeno irmão de Charles de Foucauld. As palavras de Carretto
resumem a ambiguidade da Igreja, minha casa, mas ainda não minha casa, que
revela e esconde Deus.
“Quanto devo te criticar, minha
Igreja, e, no entanto, quanto te amo! Fizeste-me sofrer mais do que qualquer
outra pessoa, e, no entanto, devo-te mais do que qualquer outra pessoa.
Gostaria de te ver destruída, e, no entanto, preciso da tua presença.
Escandalizaste-me muito, mas só tu me fizeste compreender a tua santidade. ...
Inúmeras vezes tive vontade de te bater com a porta da minha alma na cara e, no
entanto, todas as noites rezei para morrer nos teus braços seguros! Não, não
posso livrar-me de ti, porque contigo sou um tudo, embora não
completamente. E depois, para onde é que eu iria? Para construir
outra igreja? Mas não poderia construir uma sem os mesmos defeitos, pois são os
meus defeitos”.
No final do Evangelho de Mateus,
Jesus diz: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos”. Se o
Senhor permanece, como poderíamos nós partir? Deus colocou-se na nossa casa,
com todas as nossas limitações escandalosas, para sempre. Deus permanece na
nossa Igreja, mesmo com todas as corrupções e abusos. Devemos, portanto,
permanecer. Mas Deus está connosco para nos conduzir aos espaços mais amplos do
Reino. Precisamos da Igreja, da nossa casa atual com todas as suas fraquezas,
mas também de respirar o oxigénio cheio de Espírito da nossa futura casa sem
fronteiras.
[1] W. S. Gilbert, The
Gondoliers, 1889
[2] Evangelii Gaudium paragrafo
47.
[3] Cathy Wright LSJ St Charles
de Foucauld: His Life and Spirituality, p.111
[4] Confessions. Book 3
[5] Knowing Jesus p.71
[6] Letter to the Order on
Itinerancy
[1] W. S. Gilbert, The
Gondoliers [I Gondolieri], 1889
[2] Evangelii Gaudium par. 47.
[3] Cathy Wright LSJ, St Charles
de Foucauld: His Life and Spirituality [San Charles de Foucauld: La sua vita
e la sua spiritualità], p. 111
[4] Confessioni. Libro 3
[5] Knowing Jesus [Conoscere
Gesù] p.71
[6] Letter to the Order on
Itinerancy [Lettera all’Ordine sull’itineranza]
Meditação n.o 3
Amizade
2 de outubro de 2023
Na noite antes de morrer, Jesus
ora ao Pai “para que eles sejam um, como nós somos um” (João 17:11).
Mas, desde o início, em quase todos os documentos do Novo Testamento vemos os
discípulos que estão divididos, brigam, excomungam uns aos outros. Estamos
reunidos neste sínodo porque também nós estamos divididos e esperamos e rezamos
pela unidade dos corações e das mentes. Este deve ser o nosso precioso
testemunho num mundo dilacerado por conflitos e desigualdades. O Corpo de
Cristo deve encarnar aquela paz que Jesus prometeu e que o mundo anseia.
Ontem examinei duas fontes de
divisão: as nossas esperanças conflitantes e as nossas diferentes visões da
Igreja como uma casa. Mas não é necessário que essas tensões nos afastem: somos
portadores de esperança além de toda esperança, e o Senhor nos diz que na
espaçosa casa do Reino há “muitas moradas” (João 14:2). Claro que
nem todas as esperanças ou opiniões são legítimas. Mas a ortodoxia é espaçosa e
a heresia é estreita. O Senhor conduz o seu rebanho para fora do pequeno
recinto do curral para as vastas pastagens da nossa fé. Na Páscoa, ele o levará
para fora da pequena sala trancada na vastidão ilimitada de Deus, a “abundância
de Deus” (1).
Ouçamos juntos então. Mas como?
Um bispo alemão estava preocupado com o “tom cáustico” durante os debates
sinodais deles. Ele disse que tinha sido “mais uma troca retórica de golpes
verbais” do que um debate ordenado (2). Claro, debates racionais ordenados são
necessários. Como dominicano, eu nunca poderia negar a importância da razão!
Mas se quisermos ir além das nossas diferenças, precisamos doutra coisa. O
rebanho confia na voz do Senhor, porque é a dum amigo. Este Sínodo será fecundo
se depois conduzir a uma amizade mais profunda com o Senhor e entre nós.
Na noite anterior à sua morte,
Jesus dirige-se aos discípulos que estão prestes a traí-lo, negá-lo e
abandoná-lo, dizendo: “Eu vos chamo amigos” (João 15:15). Somos
abraçados pela amizade salvadora de Deus, que abre as portas das prisões que
criamos para nós mesmos. “Deus invisível [...] no seu grande amor fala aos
homens como amigos” (Concílio Vaticano II, Dei Verbum, n. 2). Ele
abriu o caminho para a eterna amizade da Trindade. Esta amizade foi oferecida
aos seus discípulos, aos publicanos e às prostitutas, aos doutores da lei e aos
estrangeiros. Foi o primeiro saborear do Reino.
Tanto o Antigo Testamento quanto
a Grécia e a Roma clássicas consideravam essas amizades impossíveis. A amizade
existia apenas entre os bons. A amizade com os ímpios era considerada
impossível. Como diz o Salmo 26, “Odeio a aliança dos malvados, não fico no
meio dos ímpios” (Salmos 26:5). Os malvados não têm amizades, pois
colaboram apenas para atos malignos. Mas o nosso Deus sempre foi propenso a
amizades inquietantes. Ele amava Jacó, o trapaceiro, Davi, o assassino e
adúltero, e Salomão, o idólatra.
Além disso, a amizade só era
possível entre iguais. Mas a graça nos eleva à amizade divina. O aquinate
afirma que solus Deus deificat, só Deus pode nos fazer divinos.
Hoje é a festa dos Anjos da Guarda, que são um sinal da amizade única que Deus
tem com cada um de nós. O Santo Padre na festa dos Anjos da Guarda disse
“ninguém anda sozinho e nenhum de nós pode pensar que esteja sozinho” (3).
Enquanto estamos a caminho, cada um de nós está envolvido na amizade divina.
Pregar o evangelho nunca é
simplesmente comunicar informação. É um ato de amizade. Cem anos atrás, Vincent
McNabb, OP, disse: “Ama aqueles por quem tu rezas. Se não o fazes, não rezas.
Reza por ti mesmo”. De São Domingos diz-se que era amado por todos porque amava
a todos. Santa Catarina de Siena estava rodeada por um círculo de amigos:
homens e mulheres, leigos e religiosos. Eles eram conhecidos como os Caterinatos,
o povo de Catarina. São Martinho de Porres é frequentemente representado com um
gato, um cão e um rato comendo do mesmo prato. Uma bela imagem da vida
religiosa!
Não havia amizades fáceis entre
os homens e mulheres do Antigo Testamento. O Reino irrompeu com Jesus cercado
por seus amigos, homens e mulheres. Ainda hoje, muitos duvidam que uma amizade
inocente entre homem e mulher seja possível. Os homens temem as acusações; as mulheres
temem a violência masculina; os jovens temem o abuso. Devemos incorporar a
amizade espaçosa de Deus.
Portanto, pregamos o evangelho
através de amizades que transcendem fronteiras. Deus superou a divisão entre
Criador e criatura. Que amizades impossíveis podemos fazer? Quando o Beato
Pierre Claverie foi ordenado bispo de Orão, na Argélia, em 1981, disse aos seus
amigos muçulmanos: “Devo-vos também o que sou hoje. Convosco, aprendendo árabe,
aprendi sobretudo a falar e a compreender a linguagem do coração, a linguagem
da amizade fraterna, onde raças e religiões entram em comunhão entre si...
Porque acredito que esta amizade vem de Deus e leva a Deus” (4). Nota bem: foi
a amizade que o tornou o que era!
É por causa da sua amizade que
ele foi assassinado por terroristas, juntamente com um jovem amigo muçulmano,
Mohammed Bouckichi. Depois da sua beatificação foi encenada uma peça
teatral, Pierre et Mohamet. A mãe de Mohamed assistiu à peça sobre
a morte do seu filho e beijou o ator que o interpretou.
A boa notícia que os jovens
esperam de nós é que Deus vai ao encontro deles em amizade. Aqui se encontra a
amizade que eles querem e que estão procurando no Instagram ou no TikTok.
Quando eu era adolescente, fiz amizade com sacerdotes católicos. Com eles descobri
a alegria da fé. Infelizmente, a crise dos abusos sexuais tornou essas amizades
suspeitas. Mais do que um pecado sexual, é um pecado contra a amizade. O
círculo mais profundo no Inferno de Dante foi reservado para
aqueles que traem a amizade.
Portanto, a base de tudo o que
faremos neste sínodo deve ser as amizades que construímos. Não parece
demasiado. Não dará origem a grandes manchetes nas médias. “Eles vieram até
Roma para fazer amigos! Que desperdício!”. Mas é através da amizade que fazemos
a transição do “eu” para o “nós” (IL A. 1.25). Sem ela não
conseguiremos nada. Quando o arcebispo anglicano de Cantuária, Rober Runice,
encontrou São João Paulo II, ele ficou desapontado porque parecia que nenhum
progresso tinha sido feito em direção à unidade. Mas o Papa lhe disse para ter
confiança. “A colegialidade afetiva precede a colegialidade efetiva”.
O Instrumentum laboris fala
da solidão de muitos sacerdotes e da sua “necessidade de cuidado, amizade e
apoio” (B. 2. 4., b). No coração da vocação sacerdotal está a arte da amizade.
Esta é a amizade eterna e igual do nosso Deus Uno e Trino. Então todo o veneno
do clericalismo se dissolverá. Mesmo a vocação de ser um genitor pode ser
solitária e precisa de amizades que a apoiem.
A amizade é uma tarefa criativa.
Em inglês, dizemos que nos caímos apaixonados, mas fazemos amigos.
Depois da parábola do Bom Samaritano, Jesus pergunta aos doutores da lei: “Qual
dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” (Lucas 10:36).
Ele diz aos seus discípulos que eles devem fazer amigos,
referindo-se ao mamon desonesto (Lucas 16:9). No sínodo temos a
tarefa criativa de fazer amizades improváveis, especialmente com pessoas com
quem discordamos. Se pensais que estou a dizer coisas estúpidas, vinde e fazei
amizade comigo!
Poderia parecer terrível!
Imaginai que eu rasteje na vossa direção, ferozmente determinado a me tornar
vosso amigo. Querereis escapar! Mas o fundamento da amizade é simplesmente
estar uns com os outros. É o prazer da presença dos outros. Jesus convida o
círculo mais íntimo, Pedro, Tiago e João, a estar com ele na montanha, como
estarão com ele no jardim do Getsémani. Após a Ascensão, eles procuram alguém
para substituir Judas, alguém que esteve com o Senhor e com eles. Pedro diz que
ele deve ser um “que nos acompanharam durante todo o tempo em que o Senhor
Jesus viveu no meio de nós, a começar pelo batismo de João até o dia em que foi
elevado do meio de nós” (Atos 1:21-22). O paraíso será simplesmente
estar com o Senhor. Quatro vezes durante a Eucaristia ouvimos as palavras “O
Senhor esteja convosco”. Esta é a amizade divina. A Irmã Wendy Becket descreveu
a oração como “ser indefesos na presença do Senhor”. Não há necessidade de
dizer mais.
No seu livro sobre a amizade
espiritual, Santo Aelredo de Rievaulx, um abade cisterciense do século XII,
escreveu: “Aqui estamos, tu e eu, e espero que Cristo seja o terceiro connosco.
Ninguém pode nos interromper agora... Então vem, querido amigo, revela o teu
coração e o que tu pensas”. Teremos a coragem de dizer o que pensamos?
Nos Capítulos Gerais
dominicanos, é claro, discutimos e tomamos decisões. Mas também rezamos e
comemos juntos, fazemos caminhadas, bebemos algo e nos divertimos. Fazemos um
ao outro um presente do bem mais importante, o nosso tempo. Construímos uma
vida comum. Assim surgem amizades improváveis. Idealmente, deveríamos também
fazê-lo durante estas três semanas do sínodo, em vez de tomar caminhos
separados no final do dia. Esperamos que isso seja possível durante a próxima sessão
deste sínodo.
O amor criativo de Deus nos dá
espaço. Herbert McCabe, OP, escreveu: “O poder de Deus é acima de tudo o poder
de deixar as coisas acontecerem. ‘Faça-se a luz’ - o poder criativo é apenas
aquele poder que, do momento em que resulta no fato de que as coisas são como
são, que as pessoas são o que são, não pode interferir com as criaturas. Claro,
criar não faz diferença para as coisas, permite que elas sejam elas mesmas. A
criação é justa e simplesmente deixar as coisas serem, e o nosso amor é uma
imagem fraca disso” (5).
Muitas vezes não são necessárias
palavras. Uma jovem argelina chamada Yasmina deixou uma nota perto do local do
martírio de Pierre Claverie. Acima escreveu: “esta noite, Pai, eu não tenho
palavras. Mas eu tenho lágrimas e esperança” (6).
Se vamos ficar juntos assim,
vamos nos ver como se fosse a primeira vez. Quando Jesus janta com o fariseu
Simão, uma mulher, provavelmente a meretriz local, entra e, chorando, lava-lhe
os pés com as suas lágrimas. Simão fica surpreso. Jesus não vê quem
é essa mulher? Mas Jesus responde: “Estás vendo esta mulher? Quando entrei na
tua casa, não me ofereceste água para lavar os pés; ela, porém, lavou meus pés
com lágrimas e os enxugou com seus cabelos” (Lucas 7:44).
Israel ansiava por ver a face de
Deus. Durante séculos cantou “faze brilhar teu rosto e seremos salvos” (Salmos 80,
8). Mas era impossível ver Deus e viver. Israel ansiava pelo insuportável, pela
visão do rosto de Deus. Em Jesus este rosto foi revelado. Os pastores puderam
vê-lo como uma criança dormindo na manjedoura e viver. A face de Deus tornou-se
visível, mas foi Deus quem morreu, fechando os olhos numa cruz.
Na segunda oração eucarística
rezamos para que os mortos sejam admitidos à luz do rosto de Deus. A encarnação
é a visibilidade de Deus. Um antigo teólogo, provavelmente Santo Agostinho,
imaginava um diálogo entre Deus e o bom ladrão que morreu junto com Jesus. Ele
diz: “eu não fiz nenhum estudo particular das Escrituras. Fui um ladrão em
tempo integral. Mas a certa altura, na minha dor e isolamento, encontrei Jesus
a olhar para mim e, no seu olhar, compreendi tudo” (7).
Neste momento entre a primeira e
a segunda vinda de Cristo, devemos nós ser aquele rosto um
para o outro. Vemos quem é invisível e sorrimos para quem
sente vergonha. Um dominicano estadunidense, Brian Pierce, visitou uma
exposição de fotos sobre crianças de rua em Lima, no Peru. Sob a foto dum
menino havia a legenda: “Saben que existo pero no me ven”. Eles sabem
que eu existo, mas não me veem. Eles sabem que eu existo como um problema, como
um incômodo, como uma estatística, mas eles não me veem!
Na África do Sul, uma saudação
generalizada é “sawabona”, que significa “eu vejo-te”. Milhões de
pessoas se sentem invisíveis. Ninguém olha para elas com consideração. Muitas
vezes há pessoas que são tentadas a cometer atos de violência simplesmente para
que as pessoas as notem! Olhai, eu estou aqui! É melhor ser visto como inimigo
do que não ser visto.
Thomas Merton juntou-se à vida
religiosa porque queria escapar da maldade do mundo. Mas alguns anos de vida
cisterciense abriram seus olhos para a beleza e bondade do povo. Um dia, na
rua, ele caiu como um véu de seus olhos. No seu diário, ele escreveu: “Então
foi como se de repente eu visse a beleza secreta dos seus corações, a
profundidade dos seus corações, onde nem o pecado nem o desejo nem o
autoconhecimento podem chegar, o centro do seu ser, a pessoa que todos são aos
olhos de Deus. Se eles pudessem se ver como realmente são. Se nós pudéssemos
sempre nos ver assim. Não haveria mais guerra, mais ódio, mais ganância” (8).
Nosso mundo tem fome de amizade,
mas é subvertido por tendências destrutivas: o crescimento do populismo, onde
as pessoas estão unidas por narrativas simplistas, slogans fáceis e cegueira
das massas. E há um individualismo agudo, o que significa que tudo o que tenho
é a minha história. Terry Eegleton escreveu: “as viagens não são mais comuns,
mas feitas sob medida, mais parecidas com pegar carona do que com uma viagem de
ônibus. Não são mais produtos em massa, mas na maior parte são tratados por
conta própria. O mundo deixou de ser moldado por histórias, o que significa que
tu podes constituir a tua vida à medida que avanças” (9). Mas a “minha
história” é a nossa história, a história do evangelho, que pode ser contada de
maneiras maravilhosamente diferentes.
Uma breve consideração final.
C.S. Lewis disse que os amantes olham um para outro enquanto os amigos olham na
mesma direção. Eles podem discordar, mas pelo menos partilham algumas das
mesmas perguntas. Cito: “Importas-te com a mesma verdade?”. A
pessoa que concorda connosco que alguns problemas, pouco considerados por
outros, podem ser de grande importância, pode ser nossa amiga. Não precisa
necessariamente concordar connosco sobre a resposta (10).
A coisa mais corajosa que
podemos fazer neste sínodo é ser sinceros entre nós sobre as nossas dúvidas e
perguntas, aquelas às quais não temos respostas claras. Então nos aproximaremos
como companheiros de busca, mendigos da verdade. Em Monsenhor Quixote,
de Graham Greene, um sacerdote católico espanhol e um prefeito comunista tiram
férias juntos. Um dia eles contam as suas dúvidas. O sacerdote diz: “é curioso
como partilhar um senso de dúvida pode unir as pessoas talvez até mais do que
partilhar uma fé. O crente lutará com outro crente por uma nuance de diferença;
aqueles que duvidam lutam apenas consigo mesmos” (11).
No seu diálogo com o rabino
Skorka, o Papa Francisco disse: “os grandes guias do povo de Deus foram homens
que deixaram espaço para a dúvida, e aqueles que querem guiar o povo de Deus
devem deixar espaço para o Senhor: por esta razão ele deve se fazer pequeno,
ter a experiência íntima de não saber como agir. Assim, o espaço é feito para
Deus e para a sua ação. Assim, fazer-se pequeno, recuar em si mesmo com a
dúvida, a experiência interior da escuridão, do não saber o que fazer, tudo
isso, em última análise, é muito purificador. Má guia é aquela que é segura de
si, obstinada. Uma das características da má guia é que ela é excessivamente
normativa por causa da sua autoconfiança” (cfr. On Heaven and Earth,
p. 52).
Se não há preocupação comum com
a verdade, então qual base há para a amizade? A amizade é difícil na nossa
sociedade, em parte porque a sociedade perdeu a fé na verdade, ou então está
ligada a verdades fundamentalistas estreitas que não podem ser discutidas.
Soljenítsin disse que “uma palavra de verdade pesa mais do que o mundo inteiro”
(13). Um dos meus irmãos no ônibus escutou duas mulheres sentadas na frente
dele. Uma queixou-se do sofrimento que ela teve de suportar. A outra lhe disse:
“Minha querida, deves levá-la com filosofia”. “O que significa filosofia?”.
“Significa não pensar sobre isso”.
A amizade prospera quando temos
a coragem de compartilhar nossas dúvidas e buscar a verdade juntos. De que
adianta conversar com pessoas que já sabem tudo ou estão completamente de
acordo? Mas como podemos fazer isso? Esse é o tema da conferência.
Note:
(1) l’uso più antico è
riscontrato in Thomas Becon (1512/13-1567)
(2) “The Tablet”, Christa
Pontgratz-Lippitt, 20 marzo 2023
(3) Papa Francesco, Meditazione
mattutina nella Cappella Sanctae Marthae, 2 ottobre 2014).
(4) Cardinale Murphy
O’Connor, A Life poured out, p. VIII
(5) Goog Matters,
Darton, Longman and Todd, London, 1987, p. 108
(6) Paul Murray, OP, Scars:
Essays, poems and meditations on affliction, Bloomsbury, 2014, p. 47)
(7) citato da Paul Murray,
OP, Scars, p. 143.
(8) citato da Willam H.
Shannon, Seeds of Peace: Contemplation and non-violence, New York,
1996, p. 63
(9) Terry Eagleton, “What’s Your
Story?”, in London Review of Books, February 16, 2023 https://www.lrb.co.uk/the-paper/v45/n04/terry-eagleton/what-s-your-story
(10)p. 66
(11) Monsignor Quixote.
New York: Penguin Classics [1982] 2008, pg. 41.
(12) Bergoglio, Jorge Mario and
Abraham Skorka. On Heaven and Earth. New York: Image [2010]
2013, p. 52, citato in Marc Bosco, SJ ‘Colouring Catholicism: Greene in the Age
of Pope Francis’.
(13) Discorso al conferimento
del premio Nobel 1970, “Una parola di verità”
Meditação n.4
Conversa sobre o caminho de
Emaús
2 de outubro de 2023
Somos chamados a seguir o
caminho sinodal na amizade. Caso contrário, não chegaremos a lugar algum. A
amizade com Deus e entre nós está enraizada na alegria de estarmos juntos, mas
precisamos de palavras. Em Cesareia de Filipe a conversa foi interrompida.
Jesus chamou Pedro de "Satanás", inimigo. Na montanha ele ainda não
sabe o que dizer, mas os discípulos começam a escutá-lo e assim a conversa pode
começar de novo à medida que se dirigem para Jerusalém.
Ao longo do caminho, os
discípulos brigam, entendem mal Jesus e, eventualmente, o abandonam. O silêncio
retorna. Mas o Senhor ressuscitado aparece e oferece-lhes palavras de cura para
serem ditas uns aos outros. Também nós precisamos de palavras de cura que
transcendam as fronteiras que nos dividem: as fronteiras ideológicas da direita
e da esquerda, as fronteiras culturais que dividem um continente do outro, as
tensões que às vezes dividem homens e mulheres. As palavras partilhadas são a
força vital de nossa Igreja. Devemos encontrá-las para o bem do nosso mundo,
onde a violência é alimentada pela incapacidade da humanidade de escutar. A
conversa leva à conversão.
Como as conversas deveriam
começar? Em Gênesis, depois da queda, há um silêncio terrível. A
comunhão silenciosa do Éden tornou-se o silêncio da vergonha. Adão e Eva estão
se escondendo. Como Deus pode superar esse abismo? Deus espera pacientemente
que eles se vistam para esconder o seu embaraço. Agora estão prontos para a
primeira conversa da Bíblia. O silêncio é quebrado por uma simples pergunta:
"Onde você está?". É um pedido de informação? É um convite para sair
para a luz e ser visível diante de Deus.
Talvez esta seja a primeira
pergunta com a qual devemos quebrar os silêncios que nos separam. Não:
"Por que tens essas opiniões ridículas sobre a liturgia?" ou
"Por que és um herege ou um dinossauro patriarcal?" ou "Por que
és surdo para mim?". Mas "Onde estás?", "Com o que estás
preocupado?". Este sou eu. Deus convida Adão e Eva a saírem do esconderijo
e serem vistos. Se também sairmos para a luz e nos deixarmos ver como somos,
encontraremos palavras para os outros. Na preparação para este sínodo, foi
muitas vezes o clero que estava mais relutante em sair para a luz e
compartilhar as suas preocupações e dúvidas. Talvez tenhamos medo de sermos vistos
nus. Como podemos encorajar uns aos outros a não temer a nudez?
Depois da ressurreição, o
silêncio do túmulo é novamente quebrado por perguntas. No Evangelho de João:
“Por que choras?”. Em Lucas: “Por que procuras os vivos entre os mortos?”.
Quando os discípulos fogem para Emaús, eles estão cheios de raiva e deceção. As
mulheres afirmam ter visto o Senhor, mas são apenas mulheres. Como hoje, às
vezes, as mulheres pareciam não contar! Os discípulos estão fugindo da
comunidade da Igreja, como muitos hoje. Jesus não lhes bloqueia o caminho e não
os condena. Ele pergunta: "Quais são essas conversas que vos fazeis entre
vós?". Quais são as esperanças e deceções que estão mexendo nos
vossos corações? Os discípulos falam com raiva. Em grego, significa literalmente:
"Quais são essas palavras que vós lançais uns aos
outros?". Então Jesus os convida a compartilhar sua raiva. Eles esperavam
que Jesus fosse aquele que redimiria Israel, mas eles estavam errados. Falhou.
Então anda com eles e abre-se para a raiva e o medo deles.
O nosso mundo está cheio de
raiva. Falamos sobre política da raiva. Um livro recente se chama American
Rage. Essa raiva também infecta a nossa Igreja. Uma raiva justificada pelos
abusos sexuais de crianças. Raiva da posição das mulheres na Igreja. Raiva
daqueles conservadores terríveis ou daqueles liberais horríveis. Como
Jesus, tenhamos a coragem de perguntar uns aos outros: "Do que tu estás
falando? Por que estás com raiva?". Temos a coragem de ouvir a
resposta? Às vezes eu me canso de ouvir toda essa raiva. Não suporto
ouvir de novo. Mas devo ouvir, como Jesus faz, caminhando em direção a Emaús.
Muitos esperam que neste sínodo
a sua voz seja ouvida. Sentem-se ignorados e sem voz. Têm razão. Mas só teremos
voz se ouvirmos primeiro. Deus chama as pessoas pelo nome. Abraão, Moisés,
Samuel. Eles respondem com a bela palavra hebraica Hinneni,
"Aqui estou". O fundamento da nossa existência é que Deus se dirige a
cada um de nós pelo nome, e nós escutamos. Não o cartesiano "penso logo
existo", mas escuto então existo. Estamos aqui para ouvir
o Senhor e os outros. Como dizem, temos dois ouvidos, mas uma só boca! A
palavra só vem depois de ouvir.
Nós ouvimos não só o que as
pessoas dizem, mas também o que elas tentam dizer. Nós ouvimos as palavras não
ditas, as palavras que procuram. Há um ditado siciliano: "A melhor palavra
é aquela que não é dita" (1). Escutamos para ver se eles estão certos, se
há um grão de verdade, mesmo que o que eles dizem seja errado? Ouçamos com
esperança e não com desprezo. No Conselho Geral da Ordem Dominicana tínhamos
uma regra. O que os irmãos diziam nunca era um absurdo. Pode ser devido a
desinformação, ilógico, até mesmo errado. Mas em algum lugar nas suas palavras
erradas há uma verdade que eu preciso ouvir. Sejamos mendigos em busca da
verdade. Os primeiros confrades disseram de São Domingos que ele "entendia
tudo na humildade da sua inteligência" (2).
Talvez as Ordens religiosas
tenham algo a ensinar à Igreja sobre a arte da conversa. São Bento ensina-nos a
procurar o consenso, São Domingos a amar o debate, Santa Catarina de Siena a
deleitar-se na conversa e Santo Inácio de Loyola a arte do discernimento. São
Filippo Neri, o papel duma risada.
Se realmente escutarmos,
nossas respostas pré-confecionadas desaparecerão. Ficaremos mudos e sem
palavras, como Zacarias antes de começar a cantar. Se não sei como responder à
dor ou à perplexidade duma irmã ou dum irmão, devo dirigir-me ao Senhor e
pedir-lhe que me dê as palavras. Então a conversa pode começar.
A conversa precisa de um salto
imaginativo para a experiência do outro. Ver com os seus olhos e ouvir com os
seus ouvidos. Devemos nos colocar na sua pele. De que experiências vêm as suas
palavras? Que dor ou esperança trazem consigo? Que caminho estão tomando?
Num Capítulo Geral dominicano
houve um acalorado debate sobre a natureza da pregação, um tema que sempre
candente para os dominicanos! O documento proposto no Capítulo entendia a
pregação como um diálogo: proclamamos a nossa fé entrando em conversa.
Mas alguns capitulares não concordavam em absoluto, alegando que isso beirava o
relativismo. Eles disseram: "Devemos ter a coragem de pregar a verdade com
audácia". Pouco a pouco, tornou-se evidente que os irmãos que estavam se
confrontando estavam falando a partir de experiências muito diferentes.
O documento foi escrito por um
irmão que vivia no Paquistão, onde o cristianismo está necessariamente em
diálogo constante com o Islão. Na Ásia não há pregação sem diálogo. Os
confrades que reagiram fortemente contra o documento vinham principalmente da
antiga União Soviética. Para eles, a ideia de um diálogo com aqueles que os
colocaram na prisão não fazia sentido. Para superar o desacordo, a argumentação
racional era necessária, mas não suficiente. Era necessário imaginar o
motivo pelo qual a outra pessoa apoiava o seu próprio ponto de vista. Que
experiência a levou a tal ponto de vista? Que feridas ele carrega consigo? Qual
é a sua alegria?
Isso exigia ouvir com toda a
própria imaginação. O amor é sempre o triunfo da imaginação, enquanto o ódio é
uma falha da imaginação. O ódio é abstrato. O amor é particular. No
romance de Graham Greene O poder e a glória, o herói, um padre
pobre e fraco, diz: "Quando tu vias as rugas nos cantos dos olhos, a forma
da boca, o modo como o cabelo crescia, era impossível odiar. O ódio era apenas
um fracasso da imaginação".
Temos de ultrapassar não só as
fronteiras da direita e da esquerda, ou as fronteiras culturais, mas também as
fronteiras geracionais. Tenho o privilégio de viver com jovens dominicanos cujo
caminho de fé é diferente do meu. Muitos religiosos e sacerdotes da minha
geração cresceram em famílias muito católicas. A fé permeou profundamente a
nossa vida diária. A aventura do Concílio Vaticano II foi encontrar o mundo
secular. Os sacerdotes franceses iam trabalhar nas fábricas. Tirávamos o nosso
hábito e mergulhávamos no mundo. Uma freira irritada, vendo-me usando o
vestido, explodiu: "Por que ainda usas essas coisas velhas?".
Hoje, muitos jovens -
especialmente no Ocidente, mas cada vez mais em todos os lugares - crescem num
mundo secular, agnóstico ou até mesmo ateu. A aventura deles é a
descoberta do Evangelho, da Igreja e da tradição. Eles usam o hábito com
alegria. Nossos caminhos são opostos, mas não contraditórios. Como Jesus, eu devo
andar com eles e aprender o que anima os seus corações. "Do que falais?
Que filmes assistis? De que música gostais?". Assim nós teremos palavras
para os outros.
Devo imaginar como eles veem a
mim! Quem sou eu aos seus olhos? Eu estava pedalando por Saigão uma vez com um
grupo de jovens estudantes dominicanos vietnamitas. Isso foi muito antes de se
tornar normal ver turistas. Virámos a esquina e lá havia um grupo de turistas
ocidentais. Eles pareciam tão grandes e gordos e tinham um colorido feio e
estranho. Que pessoas estranhas. Então percebi que eu também era assim!
Enquanto os discípulos caminham
em direção a Emaús, eles ouvem esse estranho que lhes dá tolos e os contradiz.
E ele também está enraivecido! Mas começam a se alegrar com as suas palavras.
Os corações deles ardem. Durante o Sínodo podemos aprender o prazer extático da
discordância que leva à compreensão? Hugo Rahner, irmão mais novo de Karl
(e muito mais fácil de entender!), escreveu um livro sobre o homo
ludens, a humanidade lúdica (3). Aprendamos a falar uns com os outros de
uma forma lúdica! Como fazem Jesus e a mulher samaritana no poço em João 4.
Na primeira leitura de hoje,
sentimos que na plenitude do tempo "as praças da cidade estarão cheias de
meninos e meninas a brincar pelas ruas" (Zacarias 8:5). O
Evangelho convida-nos a todos a tornar-nos filhos: "Em verdade vos digo,
se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, não entrareis no
Reino dos Céus" (Mateus 18:3). Nós nos preparamos para o Reino
nos tornando brincalhões, como crianças, mas não infantis. Às vezes, na Igreja,
somos afligidos por uma seriedade monótona e sem alegria. Não é de se admirar
que as pessoas fiquem entediadas!
Na noite do novo milénio,
enquanto eu estava na Costa do Marfim à espera de apanhar um voo para Angola,
sentei-me no escuro com os nossos estudantes dominicanos, a beber uma cerveja
juntos e a conversar calmamente sobre o que nos era mais querido. Saboreamos o
prazer de ser diferentes, de ter uma imaginação diferente. O prazer da
diferença! Tinha medo de perder o avião, mas chegou com um atraso de três dias!
A diferença é frutífera, generativa. Cada um de nós é o resultado da
maravilhosa diferença entre homens e mulheres. Se fugirmos da diferença,
seremos estéreis e sem filhos, nas nossas casas e na nossa Igreja. Mais uma
vez, agradeçamos a todos os pais neste sínodo! As famílias podem ensinar muito
sobre como lidar com as diferenças. Os pais aprendem a conhecer as crianças que
fazem escolhas incompreensíveis e ainda sabem que ainda têm um lar.
Se conseguirmos descobrir o
prazer de imaginar por que nossos irmãos e irmãs têm opiniões que consideramos
estranhas, então uma nova primavera começará na Igreja. O Espírito Santo nos
dará o dom de falar outras línguas.
Vale ressaltar que Jesus não
tenta controlar a conversa. Ele pergunta o que eles estão
falando; ele vai para onde eles vão, não para onde ele
gostaria de ir; ele aceita a hospitalidade deles. Uma conversa
verdadeira não pode ser controlada. Segue-se a direção que ela tomar. Não
é possível prever para onde nos levará, para Emaús ou Jerusalém. Para onde este
sínodo levará a Igreja? Se soubéssemos com antecedência, não faria sentido
fazê-lo! Deixamo-nos surpreender!
A conversa real é, portanto,
arriscada. Se nos abrirmos para os outros em uma conversa livre, seremos
mudados. Toda amizade profunda dá origem a uma dimensão da minha vida e da
minha identidade que não existia antes. Eu me torno alguém que nunca fui antes.
Cresci numa maravilhosa família católica conservadora. Quando me tornei
dominicano, fiz amizade com pessoas que tinham uma história diferente, uma
política completamente diferente, que minha família achava perturbadora! Quem
era eu, então, quando cheguei a casa para estar com a minha família? Como eu poderia
conciliar a pessoa que eu era com eles e o que eu estava me tornando com os
dominicanos?
Todos os anos eu conheço novos
dominicanos, com diferentes crenças e maneiras de ver o mundo. Se eu me abrir
para eles em amizade, quem eu vou me tornar? Mesmo na minha idade avançada, a
minha identidade deve permanecer aberta. No romance de Madeleine Thien sobre os
imigrantes chineses nos Estados Unidos, Do not say we have nothing,
uma das personagens diz: "Nunca tentes ser uma coisa, um ser humano
inteiro. Se tantas pessoas te amam, tu podes honestamente ser uma só
coisa?" (4). Se nos abrirmos a múltiplas amizades, não teremos uma
identidade clara e bem definida. Se nos abrirmos uns aos outros neste sínodo,
todos seremos transformados. Será uma pequena morte e ressurreição.
Um mestre dos noviços dominicano
filipino tinha um aviso na sua porta: "Perdoai-me. Eu sou um trabalho em
andamento". A coerência está no futuro, no Reino. Então o lobo e o
cordeiro dentro de cada um de nós estarão em paz entre si. Se
agora temos identidades fechadas, fixas, gravadas em pedra, nunca
experimentaremos a aventura de novas amizades que revelarão novas dimensões de
quem somos. Não estaremos abertos à amizade espaçosa do Senhor.
Quando chegam a Emaús, o voo de
Jerusalém termina. Jesus parece querer ir mais longe, mas com esplêndida ironia
convidam o Senhor do sábado a parar com eles. "Fica connosco, pois já é
tarde e a noite vem chegando!" (Lucas 24:29). Jesus aceita a
hospitalidade deles, assim como os três estrangeiros em Gênesis 18
aceitaram a hospitalidade de Abraão. Deus é nosso convidado. Nós também devemos
ter a humildade de sermos convidados. A apresentação alemã dizia que devemos
abandonar "a posição confortável daqueles que dão hospitalidade para nos
deixarmos acolher na existência daqueles que são nossos companheiros na jornada
da humanidade".
Marie-Dominique Chenu OP, o avô
do Concílio Vaticano II, saía quase todas as noites, mesmo aos oitenta anos.
Ele saía para ouvir líderes sindicais, académicos, artistas, as famílias e para
aceitar a sua hospitalidade. À noite nos encontrávamos para uma cerveja e ele
perguntava: "O que aprendeste hoje? Em que mesa te sentaste? Que presentes
recebeste?". A Igreja em cada continente tem dons a oferecer à Igreja
universal. Por exemplo, os meus irmãos da América Latina me ensinaram a abrir
os ouvidos às palavras dos pobres, especialmente o nosso amado irmão Gustavo
Gutiérrez. Vamos ouvi-las nos nossos debates este mês? O que vamos aprender com
os nossos irmãos e irmãs na Ásia e na África?
"Depois que se sentou à
mesa com eles, tomou o pão, pronunciou a bênção, partiu-o e deu a eles. Neste
momento, seus olhos se abriram, e eles o reconheceram. Ele, porém, desapareceu
da vista deles" (Lucas 24,30-31). Eles abriram os olhos. A
primeira vez que ouvimos isso foi quando Adão e Eva tiraram o fruto da árvore
da vida e os seus olhos se abriram e perceberam que estavam nus. É por isso que
alguns comentaristas antigos viram discípulos como Cléofas e a sua esposa, um
casal, como novos Adão e Eva. Agora eles comem o pão da vida.
Uma última breve reflexão:
Quando Jesus desaparece da sua vista, os discípulos dizem: "Não estava
ardendo o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as
Escrituras". (Lucas 24:32) É como se eles percebessem somente
depois da alegria que sentiram andando com o Senhor. São John Henry Newman
disse que somente quando olhamos para trás, para a nossa vida, percebemos como
Deus sempre esteve connosco. Rezo para que esta seja também a nossa
experiência.
Durante este sínodo, seremos
como aqueles discípulos. Às vezes não estaremos cientes da graça do Senhor que
opera em nós e poderemos até pensar que seja apenas uma perda de tempo. Mas
peço a Deus que mais tarde, olhando para trás, vamos perceber que Deus estava
connosco o tempo todo e que nosso coração ardia dentro de nós.
Notas:
(1) “La megliu parola è chiddra
chi nun si dici”.
(2) ‘humili cordis
intelligentia’,
(3) Man at Play or Did
you ever practice eutrapelia? Tradotto da Brian Battershaw e Edward
Quinn, Compass Books, London 1965
(4) Granta, London, 2016, p.457
Meditação n. 5
Autoridade
3 de outubro de 2023
Não pode haver conversa
frutífera entre nós, a menos que reconheçamos que cada um de nós fala com
autoridade. Todos somos batizados em Cristo: sacerdote, profeta e rei. A
Comissão Teológica Internacional sobre o sensus fidei cita São
João: "Vós recebestes a unção do Santo, e todos vós tendes
conhecimento". "Quanto a vós, a unção que recebestes de Jesus
permanece convosco, e não tendes necessidade de que alguém vos ensine; [...] A
sua unção vos ensina tudo" (1 João 2:20, 27).
Durante a preparação do Sínodo,
muitos leigos ficaram surpresos ao descobrir que, pela primeira vez, estavam
sendo ouvidos. Eles questionaram a sua própria autoridade e perguntaram:
"Posso realmente fazer alguma coisa?" (IL B.2.53). Mas não são apenas
os leigos que carecem de autoridade. Toda a Igreja é afetada por uma crise de
autoridade. Um arcebispo asiático reclamou que não tinha autoridade. Ele disse:
"Os sacerdotes são todos barões independentes que agem como se eu não
existisse." Muitos sacerdotes também afirmam ter perdido toda a
autoridade. A crise do abuso sexual nos desacreditou.
Nosso mundo inteiro está
passando por uma crise de autoridade. Todas as instituições perderam a
autoridade. Os políticos, a lei, a imprensa, todos sentiram a autoridade
escapar. A autoridade sempre parece pertencer aos outros: seja aos ditadores
que estão tomando o poder em muitos lugares, ou às novas médias, ou às
celebridades e aos influenciadores. O mundo está faminto por vozes que falem
com autoridade sobre o significado da nossa vida. Vozes perigosas ameaçam
preencher o vazio. É um mundo alimentado não pela autoridade, mas por contratos
- mesmo na família, na universidade e na Igreja.
Então, como a Igreja pode
recuperar a autoridade e falar ao nosso mundo que está faminto por vozes que
parecem verdadeiras? Lucas nos diz que quando Jesus ensinou "eles ficavam
maravilhados com os seus ensinamentos, pois sua palavra tinha autoridade"
(Lucas 4:32). Ele comanda os demônios e eles obedecem. Até o vento e o mar lhe
obedecem. Ele até tem autoridade para chamar seu amigo morto à vida:
"Lázaro, vem para fora!" (João 11:43). Quase as mesmas palavras que
encontramos no final do Evangelho de Mateus: "Foi-me dada toda a
autoridade no céu e na terra".
Mas no meio dos evangelhos
sinóticos, em Cesareia de Filipe, há uma forte crise de autoridade, que faz com
que aquela contemporânea não pareça nada! Jesus diz a seus amigos mais próximos
que ele deve ir a Jerusalém, onde ele vai sofrer, morrer e ressuscitar. Eles
não aceitam a sua palavra. Então Jesus os leva ao monte e é transfigurado
diante de seus olhos.
Sua autoridade é revelada
através do prisma da sua glória, bem como através do testemunho de Moisés e
Elias. É uma autoridade que toca seus ouvidos e seus olhos, seus corações e
suas mentes. A sua imaginação! Finalmente eles o escutam agora!
Pedro está cheio de alegria: é
bonito para nós estarmos aqui. Como disse Teilhard de Chardin, "a alegria
é o sinal infalível da presença de Deus". Esta é a alegria da qual a Irmã
Maria Ignazia falou esta manhã, a alegria de Maria. Sem alegria, nenhum de nós
tem qualquer autoridade. Ninguém acredita num cristão triste! Na
Transfiguração, esta alegria brota de três fontes: beleza, bondade e verdade.
Poderíamos citar outras formas de autoridade. O Instrumentum laboris enfatiza
a autoridade dos pobres. Há a autoridade da tradição e da hierarquia com seu
ministério de unidade.
O que gostaria de mencionar esta
manhã é que as autoridades são muitas e se reforçam mutuamente. Não deve haver
necessariamente competição, como se os leigos pudessem ter mais autoridade
somente se os bispos tivessem menos, ou se os chamados conservadores
competissem por autoridade com os progressistas. Poderíamos ser tentados a
invocar o fogo sobre aqueles que consideramos contrários a nós, como os
discípulos no evangelho de hoje (Lucas 9:51-56). Mas na Trindade não há
rivalidade. O Pai, o Filho e o Espírito Santo não competem pelo poder, assim como
não há competição entre nossos quatro Evangelhos.
Falaremos com autoridade ao
nosso mundo perdido se neste sínodo transcendermos os modos de existência
competitivos. Então o mundo reconhecerá a voz do pastor que os chama à vida.
Vamos examinar esta cena na montanha e ver a interação de diferentes formas de
autoridade.
Beleza
Antes há a beleza ou a glória.
As duas palavras são praticamente sinónimas em hebraico. O Bispo Robert Barron
disse em algum lugar - e eu imploro o teu perdão, Bispo Bob, se eu te cito mal
- que a beleza pode alcançar as pessoas que rejeitam outras formas de
autoridade. Uma visão moral pode ser percebida como moralista: "Como ousas
me dizer como viver a minha vida?". A autoridade da doutrina pode ser
rejeitada como opressiva: "Como ousas me dizer o que pensar?". Mas a
beleza tem uma autoridade que alcança nossa liberdade interior.
A beleza abre a nossa imaginação
ao transcendente, cuja pátria ansiamos. O poeta jesuíta Gerard Manley Hopkins
chama a Deus aquele "que é Ele beleza, que dá beleza". São Tomás de
Aquino afirma que ela revela o fim último da nossa vida, como o alvo para o
qual o arqueiro visa (2).
Não é de admirar que Pedro não
saiba o que dizer. A beleza nos leva além das palavras. Alguém disse que todo
adolescente tem alguma experiência de beleza transcendente. Se eles não têm
guias, como os discípulos que tiveram Moisés e Elias, esse momento passa.
Quando eu ainda tinha dezasseis anos em uma escola beneditina, vivi um momento
assim na grande igreja da abadia e tive sábios monges para me ajudar a
entender.
Mas nem toda beleza fala de
Deus. Os líderes nazistas amavam a música clássica. Na solenidade da
Transfiguração, uma bomba atômica foi lançada em Hiroshima como uma odiosa
paródia da luz divina. A beleza pode enganar e seduzir. Jesus disse: "Ai
de vós, escribas e fariseus hipócritas! Sois como sepulcros caiados: por fora
parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossos de cadáveres e de toda
podridão" (Mateus 23:27).
Mas a beleza divina da montanha
brilhará da Cidade Santa quando a glória do Senhor for revelada na cruz. A
beleza de Deus é revelada mais brilhantemente no que parece mais feio. Devemos
ir a lugares de sofrimento para ver a beleza de Deus.
Etty Hillesum, a místico judia
atraída pelo cristianismo, encontrou-a mesmo num campo de concentração nazista:
"Quero estar ali, no meio do que as pessoas chamam 'horror' e poder
continuar a dizer que 'a vida é bela'" (3). Todas as renovações da Igreja
foram acompanhadas por um renascimento estético: a iconografia ortodoxa, o
canto gregoriano, o barroco da Contrarreforma (que não é exatamente o meu
favorito!). A Reforma foi em parte um choque de visões estéticas. Que renovação
estética precisamos hoje para abrir um vislumbre de transcendência,
especialmente nos lugares de desolação e sofrimento? Como podemos abrir hoje a
beleza da cruz?
Quando os primeiros dominicanos
chegaram à Guatemala no século XVI, a beleza abriu o caminho para que eles
partilhassem o evangelho com os povos indígenas. Recusaram a proteção dos
conquistadores espanhóis. Os religiosos ensinavam aos comerciantes indígenas
locais hinos cristãos para cantar quando eles se moviam pelas montanhas para
vender os seus bens. Isso abriu o caminho para os confrades, que puderam se
mover com segurança na região ainda conhecida como Vera Paz. Verdadeira Paz.
Mas, no fim, os soldados vieram e mataram não só os nativos, mas também os
nossos confrades que estavam tentando protegê-los.
Quais canções podem penetrar no
novo continente dos jovens? Quem são nossos músicos e poetas? Assim a beleza
abre a imaginação para o fim inefável da viagem. Mas, tal como Pedro,
poderíamos ser tentados a permanecer assim. São necessárias outras formas de
compromisso imaginativo para nos fazer descer da montanha para o primeiro
sínodo no caminho para Jerusalém. Aos discípulos são oferecidos dois
intérpretes do que veem, Moisés e Elias, a lei e os profetas. Ou da bondade e
da verdade.
Bondade
Moisés levou Israel da
escravidão à liberdade. Os israelitas não queriam ir. Eles tinham fome pela segurança
do Egito. Eles temiam a liberdade do deserto, assim como os discípulos temem ir
a Jerusalém. N’Os irmãos Karamazov de Dostoievski, o Grande Inquisidor afirma
que "nada jamais foi insuportável para a humanidade e para a sociedade do
que a liberdade... no fim, eles colocarão a sua liberdade aos nossos pés e nos
dirão: 'É melhor que nos torneis escravos, mas que nos deis comida'".
Os santos têm a autoridade da coragem. Desafiam-nos a partir. Convidam-nos a
enfrentar com eles a arriscada aventura da santidade. Santa Teresa Benedita da
Cruz nasceu numa família judaica observante, então, quando adolescente,
tornou-se ateia. Mas quando ela acidentalmente tomou em mãos a autobiografia de
Santa Teresa de Ávila, leu-a a noite toda. Ela disse: "Quando terminei o
livro, eu disse a mim mesma: esta é a verdade." Foi isso que a levou à
morte em Auschwitz. Foi isso. Esta é a autoridade da santidade. Ela nos convida
a desistir do controle da nossa vida e permitir que Deus seja Deus.
O livro mais popular do século
XX foi O Senhor dos Anéis, de J.R. Tolkien. É um
romance profundamente católico. Ele considerava que fosse a história da
Eucaristia. Os mártires eram as primeiras autoridades na Igreja, porque tinham
dado tudo com coragem. G.K. Chesterton disse: "A coragem é quase uma
contradição em termos, porque significa um forte desejo de viver que toma a
forma de uma disponibilidade para morrer" (4). Temos medo de apresentar o
perigoso desafio de nossa fé? Herbert McCabe, OP, disse: "Se tu amas,
serás ferido, talvez morto. Se tu não amas, já estás morto". Os jovens não
são atraídos pela nossa fé se a domamos.
"O perfeito amor lança fora
o medo" (1 João 4:18). O frei Michael Anthony Perry, OFM, ex-Ministro
Geral dos Franciscanos, disse: "No batismo renunciámos ao direito de
temer" (5). Eu diria que renunciámos ao direito de sermos escravizados
pelo medo. Os corajosos conhecem o medo. Só teremos autoridade no nosso mundo
de medo se as pessoas virem que arriscamos tudo. Quando os nossos irmãos e
irmãs europeus foram pregar o evangelho na Ásia há quatro séculos, metade deles
morreu antes mesmo de chegarem, de doença, naufrágio, piratas. Nós teríamos a
mesma coragem louca?
Henri Burin de Roziers
(1930-2017) era um advogado dominicano francês, radicado na Amazônia
brasileira. Ele levou a tribunal grandes proprietários de terras que muitas
vezes escravizam os pobres, forçando-os a trabalhar nas suas vastas
propriedades e matando-os se tentam fugir. Henri recebeu muitas ameaças de
morte. Foi-lhe oferecida proteção policial, mas ele sabia que provavelmente
seriam mesmo eles que o matariam. Quando parei na sua casa, ele me ofereceu o
seu quarto para passar a noite. No dia seguinte ele me disse que não tinha
conseguido dormir com medo de que eles chegassem e, em vez de levá-lo, levassem
a mim sem querer!
Assim a autoridade da beleza
fala do fim da viagem, da pátria que nunca vimos. A autoridade da santidade
fala da jornada que devemos percorrer se quisermos chegar. É a autoridade
daqueles que dão a vida. O poeta irlandês Pádraig Pearse proclamou:
“Desperdicei os anos esplêndidos que o Senhor Deus deu à minha juventude –
tentando fazer coisas impossíveis, acreditando que só elas valiam o esforço.
Senhor, se eu tivesse ainda esses anos, eu os desperdiçaria de novo. Eu os
afasto de mim” (6).
Verdade
Depois há Elias. Os profetas são
aqueles que dizem a verdade. Ele viu através das fantasias dos profetas de Baal
e ouviu a voz ainda sutil do silêncio na montanha. Veritas, verdade, o lema da
Ordem Dominicana. Atraiu-me aos dominicanos antes mesmo de eu conhecer um, o
que talvez tenha sido providencial!
O nosso mundo foi desligado das
verdades: notícias falsas, declarações absurdas na internet, teorias da
conspiração malucas. No entanto, enterrado na humanidade está um instinto
imparável pela verdade, e quando ela é dita, tem algum último vestígio de
autoridade. O Instrumentum laboris não tem medo de ser sincero sobre os
desafios que temos de enfrentar. Ele fala abertamente das esperanças e das
preocupações, da raiva e da alegria do povo de Deus. Como podemos atrair as
pessoas para Aquele que é a verdade se não somos sinceros sobre nós mesmos?
Deixai-me mencionar apenas duas
maneiras pelas quais esta tradição profética de dizer a verdade é necessária.
Em primeiro lugar, falar sinceramente das alegrias e dos sofrimentos do mundo.
Em Hispaniola, Bartolomeo de Las Casas tinha levado uma vida medíocre até que,
no Advento de 1511, leu o sermão de Antonio de Montesinos, OP, que confrontava
os conquistadores e a escravização da população indígena: "Dizei-me com
que direito ou por que interpretação de justiça vós mantendes os índios nesta
cruel e horrível servidão? Por que autoridade tendes travado essas guerras
detestáveis contra pessoas que uma vez viviam pacificamente e tranquilamente na
sua terra?". Las Casas leu, sabendo que era verdade, e se arrependeu.
Portanto, neste sínodo ouviremos pessoas que falarão sinceramente das
"alegrias e esperanças, tristezas e ansiedades dos homens de
hoje" (Gaudium et spes, n. 1).
Para a verdade, também
precisamos de um conhecimento disciplinado que resista à nossa tentação de usar
a Palavra de Deus e o ensinamento da Igreja para os nossos propósitos.
"Deus deve estar certo porque concorda comigo!". Os estudiosos
bíblicos, por exemplo, referem-se aos textos originais na sua estranheza, na
sua diversidade. Quando eu estava no hospital, um enfermeiro me disse que
queria saber latim para que pudesse ler a Bíblia na língua original. Eu não
disse nada! Os verdadeiros estudiosos se opõem a qualquer tentativa simplista
de alistar a Escritura ou a tradição para as nossas empreitadas pessoais. A
Palavra de Deus pertence a Deus. Escutai-O. Não possuímos a verdade. É a
verdade que nos possui.
Todo amor nos abre para a
verdade dos outros. Descobrimos como, em certo sentido, eles permanecem
inescrutáveis. Não podemos tomar posse deles e usá-los para nossos próprios
fins. Nós os amamos em sua alteridade, em sua liberdade incontrolável.
Assim, no monte da
Transfiguração, vemos que diferentes formas de autoridade são invocadas para
guiar os discípulos para além da grande crise de autoridade em Cesareia de
Filipe. Todas essas, e outras, são necessárias. Sem verdade, a beleza pode ser
vazia. Como alguém disse, "a beleza é para a verdade como a bondade é para
a comida". Sem bondade a beleza pode enganar. A bondade sem verdade cai no
sentimentalismo. A verdade sem bondade leva à Inquisição. São John Henry Newman
usou belas palavras para falar sobre as muitas formas de autoridade, governo,
razão e experiência.
Todos nós temos autoridade, mas
de uma maneira diferente. Newman escreveu que se a autoridade do governo se
torna absoluta, é tirânica. Se a razão se torna a única autoridade, ela cai no
racionalismo seco. Se a experiência religiosa se torna a única autoridade,
então a superstição vence. Um sínodo é como uma orquestra com os diferentes
instrumentos, cada um com a sua própria música. É por isso que a tradição
jesuíta de discernimento é tão frutífera. A verdade não é alcançada pelo voto
da maioria, assim como você não lidera uma orquestra ou um time de futebol
votando!
A autoridade da guia certamente
assegura que o diálogo da Igreja seja fecundo, que nenhuma voz prevaleça sobre
as outras e as sufoque. Ela discerne a harmonia oculta. Jonathan Sacks,
rabino-chefe da Grã-Bretanha, escreveu: "Em tempos turbulentos, para os
líderes religiosos há uma tentação quase incontrolável de ser confrontante. Não
só devemos proclamar a verdade, mas também devemos denunciar a falsidade. As
escolhas devem ser apresentadas como divisões claras. Não condenar significa perdoar".
No entanto, ele afirma: "um profeta não ouve um único imperativo, mas
dois: orientação e compaixão, o amor pela verdade e uma solidariedade contínua
com aqueles para quem a verdade se tornou obscura. Preservar a tradição e ao
mesmo tempo defender aqueles que outros condenam é a difícil e necessária
tarefa da liderança religiosa numa era secular" (7).
Todo o poder vem do nosso Deus
Uno e Trino, aquele em quem tudo é partilhado. O teólogo italiano Leonardo
Paris afirma: "O Pai partilha o seu poder. Com todos. E ele configura todo
o poder como partilhado... Não é mais possível citar Paulo - 'Não há mais judeu
ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em
Cristo Jesus' (Gálatas 3:28) - e apelar à sinodalidade, sem reconhecer que isso
significa encontrar formas históricas concretas, de modo que cada um se
reconheça como tendo o poder que o Pai quis confiar-lhe" (8).
Se a Igreja realmente se tornará
uma comunidade de doação mútua de poderes, então falaremos com a autoridade do Senhor.
Tornar-se tal Igreja será doloroso e belo. Isto é o que aprofundaremos na
última meditação.
Notas:
(1) The Golden Echo (L’eco
d’oro)
(2) ST III, 45
(3) An Interrupted Life: The Diaries and Letters of Etty Hillesum 1941 – 43,
Persephone Books, London, 2007, p. 276
(4) Orthodoxy, London 1996, p. 134
(5) Benotti, p. 66
(6) Citato dal cardinale Murphy O’Connor, “Fiftieth Anniversary of Priesthood”,
in Daniel P. Cronin, Priesthood: A Life Open to Christ (St Pauls Publishing,
London, 2009), p. 134.
(7) “Elijah and the Still, Small Voice”, www.rabbisacks.org/covenant-conversation/pinchas/elijah-and-the-still-small-voice
(8) cfr. Leonardo Paris, L’erede. Una cristologia, Queriniana, 2021, pp.
220-221. Prossimamente pubblicato anche in inglese da Brill, con una prefazione
di Massimo Faggioli
Meditação n. 6
O Espírito da verdade
3 de outubro de 2023
Os discípulos veem a glória do
Senhor e o testemunho de Moisés e Elias. Agora eles encontram coragem para
descer da montanha e seguir em direção a Jerusalém. No evangelho de hoje (Lucas
9, 51-56) os vemos no caminho. Eles encontram os samaritanos que se opõem a
eles porque se dirigem para Jerusalém. A reação imediata dos discípulos é
enviar fogo do céu e destruí-los. Na verdade, eles acabaram de ver Elias e foi
isso que ele fez com os profetas de Baal! Mas o Senhor os repreende. Eles ainda
não entenderam o caminho que o Senhor os está conduzindo.
Nas próximas três semanas
poderemos ser tentados a invocar fogo do céu sobre aqueles de quem discordamos!
A nossa sociedade está cheia de raiva ardente. O Senhor nos convida a banir
esses impulsos destrutivos do nosso encontro.
Esta raiva generalizada surge do
medo, mas não devemos ter medo. O Senhor prometeu o Espírito Santo, que nos
guiará em toda a verdade. Na noite anterior à sua morte, Jesus disse: “Tenho
ainda muitas coisas a vos dizer, mas não sois capazes de compreender agora.
Quando ele vier, o Espírito da Verdade, vos guiará em toda a verdade. Ele não
falará por si mesmo, mas dirá tudo quanto tiver ouvido e vos anunciará o que há
de vir” (João 16, 12-13).
Quaisquer que sejam os conflitos
que cruzem o nosso caminho, temos a certeza de uma coisa: o Espírito da verdade
está a guiar-nos para toda a verdade. Mas não será fácil. Jesus avisa os seus
discípulos: “Tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas não sois capazes de
compreender agora”. Em Cesareia de Filipe, Pedro não suporta ouvir que Jesus
terá de sofrer e morrer. Nesta última noite antes da morte de Jesus, Pedro não
suporta a verdade de que ele mesmo negará Jesus. Ser guiado pela verdade
significa ouvir coisas desagradáveis.
Quais são as verdades que temos
dificuldade em enfrentar hoje? Foi muito doloroso enfrentar a extensão dos
abusos sexuais e da corrupção na Igreja. Parecia um pesadelo do qual se espera
acordar. Mas se tivermos a coragem de enfrentar esta verdade vergonhosa, a
verdade libertar-nos-á. Jesus promete que “ficareis tristes, mas a vossa
tristeza se transformará em alegria” (16, 20), como acontece com a dor do parto
de uma mulher. Estes dias do Sínodo serão por vezes dolorosos, mas se nos
deixarmos guiar pelo espírito, serão as dores do parto de uma Igreja renascida.
Este é o nosso testemunho para
uma sociedade que, por sua vez, foge da verdade. O poeta T.S. Eliot afirmou que
“a humanidade não pode suportar demasiada realidade” (1). Caminhamos para uma
catástrofe ecológica, mas os nossos líderes políticos fingem, na maioria das
vezes, que nada está a acontecer. O nosso mundo está crucificado pela pobreza e
pela violência, mas os países ricos não querem ver os milhões de irmãos e irmãs
nossos sofrendo e procurando um lar.
A sociedade ocidental tem medo
de enfrentar a verdade de que somos seres mortais vulneráveis, homens e
mulheres feitos de carne e osso. Evitamos a verdade da nossa existência
corporal, fingindo que podemos nos identificar como quisermos, como se fôssemos
apenas mentes. A cultura do cancelamento significa que as pessoas de quem
discordamos devem ser silenciadas, impedidas de falar, tal como os discípulos
queriam lançar fogo sobre os samaritanos que não acolheram Jesus. Quais são as
verdades dolorosas que os nossos irmãos e irmãs em diferentes continentes temem
enfrentar? Não cabe a mim dizer.
Se tivermos a coragem de sermos
honestos sobre quem somos, ou seja, seres humanos mortais vulneráveis e irmãos
e irmãs numa Igreja que sempre foi heroica e corrupta, então falaremos com
autoridade a um mundo que ainda tem fome da verdade, mesmo quando teme que ela
seja inatingível. Isto requer coragem, que para o aquinate era fortitudo
mentis, isto é, a força da mente para ver as coisas como elas são, para
viver no mundo real. A poetisa Maya Angelou disse: “A coragem é a mais
importante de todas as virtudes, porque sem coragem não se pode praticar outras
virtudes de forma coerente” (2).
Quando Santo Oscar Romero voltou
para casa em El Salvador, um funcionário da imigração disse “aqui está a
verdade”. Ele foi verdadeiro diante da morte. Sentado num banco, perguntou a um
amigo se tinha medo de morrer. O amigo respondeu que não. Romero respondeu:
“Mas eu, sim. Eu tenho medo de morrer". Foi esta sinceridade que tornou
tão belo o seu martírio. Desde que viu o corpo mutilado do seu amigo jesuíta
Rutilio compreendeu o que o esperava. Quando foi martirizado, o seu corpo foi
encontrado coberto de suor. Parece que ele viu o homem que estava prestes a
matá-lo e não fugiu.
Na última noite, Jesus avisa os
seus discípulos que se permanecerem n’Ele, a videira verdadeira, serão podados
para que possam dar mais fruto. Neste Sínodo poderíamos sentir que estamos
sendo podados! Só assim poderemos dar mais frutos. Isto pode significar que
somos podados das ilusões e preconceitos mútuos que podemos ter, podados dos
nossos medos e das nossas ideologias estreitas. Podados do nosso orgulho.
Um dos meus jovens irmãos
incentivou-me a falar pessoalmente sobre este assunto, embora eu tenha algumas
dúvidas em fazê-lo. Há alguns anos, fiz uma grande cirurgia por causa de um
câncer de mandíbula. Durou dezassete horas. Fiquei no hospital por cinco
semanas, sem conseguir comer nem beber. Muitas vezes eu não entendia muito bem
onde estava e quem eu era. Fui despojado da dignidade e fiquei completamente
dependente dos outros até mesmo para as necessidades mais básicas. Foi uma poda
terrível. No entanto, também foi uma bênção. Naquele momento de desamparo, eu
não podia afirmar ser importante, não podia me gabar de nenhuma conquista. Eu
era apenas mais uma pessoa doente numa cama de hospital, sem nada para dar. Eu
não conseguia nem orar. Então meus olhos se abriram um pouco mais para o amor
completamente gratuito e imerecido do Senhor. Não havia nada que eu pudesse
fazer para merecer isso, e era maravilhoso que eu não tivesse mesmo de fazê-lo.
O Espírito está em cada um de
nós, guiando-nos juntos para dentro de toda a verdade. Fui ordenado pelo grande
Bispo Butler, a única pessoa presente no Concílio Vaticano II que falava
perfeitamente o latim ciceroniano! Ele amava dizer: “Não tenhamos medo de que a
verdade possa prejudicar a verdade” (3). Se o que outra pessoa diz é
factualmente verdadeiro, não pode ameaçar a verdade que me é cara. Devo abrir o
meu coração e a minha mente para a amplitude da verdade divina. Se acredito que
o que o outro diz não é verdade, naturalmente tenho de dizê-lo, com a devida
humildade. Na língua alemã existe a bela palavra Zwischenraum. Se
bem a entendo, significa que a plenitude da verdade está no espaço entre nós
enquanto falamos. O mistério de Deus se revela sempre nos espaços vazios, desde
os espaços vazios entre as asas do querubim da arca da aliança até o túmulo
vazio.
O choque de verdades
aparentemente incompatíveis pode ser doloroso e raivoso. Basta pensar no relato
que São Paulo faz do seu confronto com São Pedro em Antioquia, narrado na Epístola
aos Gálatas: «Mas, quando Cefas chegou a Antioquia, opus-me a ele
abertamente» (2, 11). Mas eles deram-se a mão direita da amizade e a Santa Sé
olha para ambos como fundadores! Eles foram unidos na morte como mártires.
Devemos procurar formas de dizer
a verdade para que a outra pessoa possa ouvi-la sem se sentir desanimada.
Pensai em quando Pedro encontrou Jesus na praia em João capítulo 21. Na noite
anterior à morte de Jesus, Pedro se gabou de amar o Senhor mais do que qualquer
outra pessoa. Mas pouco depois ele negou o Senhor três vezes, no momento de
maior vergonha da sua vida. À margem, porém, Jesus não o incomoda por causa do
fracasso. Ele lhe pergunta gentilmente, talvez com um sorriso, três vezes: “Tu
me amas mais do que estes?”. Com infinita delicadeza ele ajuda Pedro três vezes
a anular a sua tripla negação. Ele o desafia a enfrentar a verdade com toda a
ternura do amor. Somos capazes de desafiar uns aos outros com esta delicada
sinceridade?
A poetisa estadunidense Emily
Dickinson oferece um bom conselho: “Diz toda a verdade, mas di-la obliquamente
- o sucesso está em um circuito”.
Perdoai-me se cito poemas. Eles
podem ser difíceis de traduzir. O que ela quer dizer é que às vezes a verdade é
falada com mais força se for falada indiretamente, em modo que a outra pessoa a
possa ouvir. Se disseres a alguém que ele é um dinossauro patriarcal,
provavelmente não o ajudarás! É claro que às vezes será igualmente doloroso. Mas
o Papa Francisco disse: “proclamai a verdade, mesmo quando ela for
desconfortável” (4).
Isso exigirá alguma perda de
controle a todos nós. Jesus diz a Pedro: “Em verdade, em verdade, te digo:
quando eras jovem, tu mesmo amarravas teu cinto e andavas por onde querias;
quando, porém, fores velho, estenderás as mãos, e outro te amarrará pela
cintura e te levará para onde não queres ir” (João 21, 18).
Se o Sínodo tem as dinâmicas da
oração mais do que as dum parlamento, pedir-nos-á uma espécie de abandono do
controle, até mesmo uma espécie de morte. Deixar Deus ser Deus. Na Evangelii
gaudium o Santo Padre escreveu: "não há liberdade maior do que
deixar-se guiar pelo Espírito, renunciando a calcular e controlar tudo, e
deixar que Ele ilumine-nos, guie-nos, oriente-nos, que nos empurre para onde
Ele quiser” (n. 280). Abrir mão do controle não significa fazer nada! Como a
Igreja tem sido uma estrutura controladora, por vezes são necessárias
intervenções fortes para permitir que o Espírito Santo nos conduza para onde
nunca pensaríamos ir.
Temos um instinto profundo de
nos apegarmos ao controle, e é por isso que muitos temem o Sínodo. No
Pentecostes, o Espírito Santo desce com força sobre os discípulos, que são
enviados até aos confins da Terra. Os apóstolos, porém, estabeleceram-se em
Jerusalém e não querem partir. É necessária perseguição para tirá-los do ninho
e mandá-los embora de Jerusalém! Firmeza afetuosa! Acima do meu escritório em
Santa Sabina, alguns falcões fazem ninhos todos os anos. Chegou o dia em que os
pais expulsaram os filhotes do ninho, forçando-os a voar ou morrer. Sentado à
minha mesa pude ver como eles estavam lutando para permanecer no ar! Às vezes o
Espírito Santo nos expulsa do ninho e nos pede para voar! Nós trememos,
entramos em pânico, mas voamos!
No Getsémani, Jesus abre mão do
controle da sua vida e a confia ao Pai. Não do jeito que eu quero! Quando eu
era um jovem frade, um dominicano francês, que havia sido sacerdote
trabalhador, hospedou-se na comunidade. Ele teve de ir para a Índia para servir
os mais pobres dos pobres e veio para Oxford para estudar bengali.
Perguntei-lhe o que pretendia fazer: “Qual é o teu plano?”. Ele respondeu:
“Como posso saber antes que os pobres mo digam?”.
Quando jovem provincial, visitei
um mosteiro dominicano que estava quase fechado. Restavam apenas quatro freiras
idosas. O anterior provincial, Pedro, me acompanhava. Quando dissemos às
freiras que o futuro do mosteiro parecia bastante incerto, uma delas respondeu:
“Mas Timothy, o nosso querido Senhor não permitiria que o nosso mosteiro
morresse, não achas?”. Peter respondeu imediatamente: “Irmã, ele deixou o seu
Filho morrer”. Portanto, podemos deixar as coisas morrerem, não em desespero,
mas em esperança, para abrir espaço para o novo.
São Domingos tentou passar o
controle da Ordem aos seus confrades, porque cada um deles havia recebido o
Espírito Santo. Portanto, ser guiado pelo Espírito Santo significa ser
libertado da cultura do controle. Na nossa sociedade, a liderança nada mais é
do que manter as mãos nas alavancas do poder. O Papa São João XXIII brincava
dizendo que todas as noites dizia a Deus: “O Papa deve dormir agora, então tu,
Deus, deves cuidar da Igreja por algumas horas”. Como ele bem havia entendido,
liderança às vezes significa abrir mão do controle.
O Instrumentum laboris chama-nos
a fazer “a opção preferencial pelos jovens” (por exemplo, B.2.1). Todos os anos
lembramos que Deus veio entre nós como uma criança, um bebê recém-nascido. A
confiança nos jovens é uma parte intrínseca da guiagem cristã. Os jovens não
estão aqui para ocupar o lugar de nós, pessoas mais velhas, mas para fazer o
que não conseguimos imaginar. Quando São Domingos enviou os seus noviços para
pregar, alguns monges avisaram-no de que assim os perderia. Domingos respondeu:
“Eu sei com certeza que os meus jovens sairão e reentrarão, serão mandados para
fora e retornarão; mas os vossos jovens serão mantidos trancados e de qualquer
maneira sairão" (5).
Ser guiado pelo Espírito em toda
a verdade significa abandonar o presente, confiantes que o Espírito gerará
novas instituições, novas formas de vida cristã, novos ministérios. Ao longo
dos últimos dois milénios, o Espírito Santo tem trabalhado criando novas formas
de ser Igreja, desde os Padres e Madres do deserto às Ordens dos frades no
século XIII, e até aos Jesuítas durante a Contrarreforma! Os novos movimentos
eclesiais no século passado. Devemos deixar o Espírito Santo agir criativamente
em meio de nós, com novas formas de ser Igreja que agora não podemos imaginar, mas
talvez os jovens possam! Ouvi-o, disse a voz na montanha. E isto inclui escutar
os jovens, nos quais o Senhor vive e fala (cf. Mateus 11, 28).
Ser guiados na verdade, como
vimos, não é apenas uma questão de comparação racional. Não somos apenas
cérebros. Revelemos uns aos outros quem somos, a nossa humanidade vulnerável.
São Tomás de Aquino gostava de dizer de Aristóteles que “anima este
quodammodo omnia”, “a alma em certo sentido é tudo”. Compreendemos em
profundidade abrindo nosso ser ao que é outro. Deixamo-nos tocar e mudar pelo
nosso encontro mútuo. A verdade da plenitude na qual o Espírito Santo nos está
a guiar não é um conhecimento desapaixonado que analisa de longe. É mais um
conhecimento proativo. É inseparável do amor transformador (IL A.1 27). A
maneira Dominicana é que através do conhecimento chegamos ao amor. O caminho
Franciscano é que através do amor chegamos ao conhecimento. Ambos estão certos.
O mistério para o qual somos
guiados é o dum amor totalmente sem rivais. Tudo o que o Pai tem é dado ao
Filho e ao Espírito Santo. Até mesmo a igualdade. Participar da vida divina é
estar livre de toda rivalidade e competição. É com este mesmo amor divino,
livre de toda rivalidade, que deveríamos amar-nos uns aos outros durante este
Sínodo. São João escreveu: “Se alguém disser: “Amo a Deus”, mas odeia o seu
irmão, é mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a
Deus, a quem não vê” (1 João 4:20).
A jornada para a plenitude da
verdade é inseparável da aprendizagem do amor. A mudança profunda só acontecerá
se a busca para compreender a vontade do Senhor for distorcida na dupla espiral
de aprender a amar aqueles que consideramos difíceis. Será complicado
comunicá-lo às pessoas que não estão aqui. Será que todas essas pessoas realmente
chegaram tão longe, com grandes custos, apenas para amar umas às outras? As
decisões práticas, é claro, são inevitáveis e necessárias. Mas devem surgir da
transformação pessoal e comunitária de quem somos, caso contrário serão mera
administração.
Imaginai a alegria de serem
libertados de toda competição entre vós, de modo que a maior voz que os leigos
têm não signifique que os bispos se foram, ou que quanto mais autoridade é
concedida às mulheres, menos os homens têm, ou que a maior consideração que os
nossos irmãos e irmãs africanos recebem diminui a autoridade da Igreja na Ásia
ou no Ocidente.
Isto exige de cada um de nós uma
profunda humildade enquanto aguardamos com confiança os dons de Deus. Simone
Weil foi uma mística judia francesa, falecida em 1943, que no seu caminho rumo
à verdade disse: “Creio em Deus, na Trindade, [...] na Redenção, na Eucaristia,
nos ensinamentos do Evangelho” (6). Escreveu que “os bens mais preciosos não
devem ser procurados, mas esperados... Um olhar antes de tudo atento, no qual a
alma se esvazia de todo o seu próprio conteúdo para acolher em si o ser que vê
no seu verdadeiro aspeto tal como é” (7).
Se nos deixarmos guiar pelo
Espírito da verdade, certamente discutiremos. Será doloroso às vezes. Haverá
verdades que preferiríamos não enfrentar. Mas seremos levados um pouco mais
profundamente no mistério do amor divino e experimentaremos uma tal alegria que
as pessoas nos invejarão por estarmos aqui e desejarão participar da próxima
sessão do Sínodo!
Notas:
(1) Burnt Norton, I quattro quartetti
(2) Cerimonia, Cornell, 24 maggio 2008
(3) Ne timeamus quod veritas veritati noceat
(4) cfr. 24 gennaio 2023
(5) ed. Simon Tugwell, OP, Early Dominicans: selected writings,
Ramsey N.J., 1982 p.91
(6) S. PÉTREMENT, La vita di Simone Weil, Adelphi, Milano 2010, p. 646
(7) Waiting on God, trad. di Emma Craufurd, London 1959, p.169.