Pe. Luciano Zilli
Quando Deus decidiu criar o mundo, a terra estava completamente vazia, mergulhada em densas trevas, não havia calor, luz, e as águas eram tumultuosas e dominavam toda superfície terrestre. Um ambiente hostil à vida, adverso à precária condição das coisas que viriam a existir, à espera de uma Voz que as libertasse daquela condição caótica, antivital. E a Voz se fez ouvir – quem a teria ouvido no Princípio, antes que ouvidos fossem criados? – Ressoou-se por todo o orbe terrestre, separando as água da terra, ordenando que do caos tenebroso refulgisse a luz.
Estrondo de uma Voz... Luz! ... “Eu sou a Luz do mundo”.
E a luz se fez, qual condição primordial à existência de todas as coisas – nenhuma vida pode subsistir submersa nas trevas. Resplandecendo a luz, todas e cores e sons, todas as sensações, movimentos e impulsos vitais, seres aquáticos, terrestres, voláteis, se revestiram de forma, e ganharam vida. E assim, o caos primigênio foi se constituindo, dia-pós-dia, uni-verso: unidade na diversidade; ordem, perfeição, harmonia: Vida. Presépio primordial.
Após seis longos e inobservados dias, ressoando e criando, plasmando e dando forma à matéria informe, a grande Voz, sábia e soberana, chama à existência aquela forma vital capaz de dar sentido a todas aquelas formas inconscientes de vida – dar sentido e governar, conduzir toda a criação ao louvor sideral. Máxima perfeição entre as coisas criadas, porque “imagem e semelhança” da mesma energia vital criadora: “Façamos o ser humano – homem e mulher – à nossa imagem e semelhança!”.
E, assim, homem e mulher – Adão e Eva –, pó da terra, frágil barro informado, recebem o Ruah-Espírito, hálito sagrado. E da Voz ressoa uma benção, e a bênção os torna fecundos: pai e mãe de toda a humanidade; senhores deste mundo, a serviço da Palavra-Verbo-Luz, Voz que comunica a sabedoria dos íntimos desejos divinos; Voz que falará pelos profetas, preanunciando a encarnação do Verbo; Voz que continua ressoar em cada coisa que pulsa vida, sinais visíveis de um amor invisível – sacramento –, pois o universo, comportando todas as suas diversidades, reflete, nas perfeições das coisas criadas, a suprema perfeição; nas belezas singelas, a única Beleza, antiga e sempre nova.
... E o tempo cumpre seu destino. Homem e mulher se distanciam da fonte vital, já não ouvem mais nitidamente o sussurrar da Voz do Princípio. O Presépio original já não comporta mais suas ambições de poder e domínio: querem se tornar a Voz. Pecado, solidão, sofrimento... Morte. Mas o Amor é mais forte que a Morte. O Amor é o Verbo que se faz carne e vem armar sua humilde tenda no meio de nós. E o Verbo eterno, Voz que continua a sustentar e plasmar o universo, a separar as aguas da terra firme; Luz que vem ao mundo para recriar o mundo – pois, nenhuma vida pode subsistir submersa nas trevas.
E as profecias se cumprem. Deus não engana. E o Verbo-Luz se faz criança, e nasce pobre, no meio dos pobres: “Façamos a Palavra à nossa imagem e semelhança”, à semelhança dos homens, semelhantes a Deus: maravilhosa troca, na qual o Verbo se reveste de nossa carne mortal – frágil poeira, barro insuflado, vivificado com o Ruah-Sopro, tenro respirar da Voz criadora –; e nós, de sua aura de eternidade. E o Natal se torna Gênesis, o Presépio se torna um novo Princípio – pois, o Amor é mais forte que a Morte! A graça vence o pecado.
No Princípio, a Voz preparava um mundo capaz de comportar o ser humano – o primeiro Presépio, berço da humanidade –, destinado a refletir e ressoar a potência e a sabedoria da Voz fontal; no Presépio, Deus vem ao mundo para recriá-lo, remetê-lo ao Princípio. No Princípio, havia luz quando Deus chamava à existência o ser humano; no Presépio, mergulhado nas trevas daquela fria noite, faz-se Luz quando se ouve ressoar uma tênue voz – não estrondosa, como no Princípio –, mas “choro de criança”, eco proveniente de um ventre santo – nova Eva, nova mãe. No Princípio, a Voz se transmuta em bênção de vida; no Presépio, o Verbo-carne, Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, cumpre uma antiga profecia: “Em ti, Abraão, em tua descendência, todas as famílias da terra serão abençoadas”. Qual filho de Abraão, semente santa, Jesus vem ao mundo para reverter a maldição que pesava sobre a humanidade, desde os tempos primordiais, quando homem e mulher decidem desobedecer a Voz. Ele é nossa Paz, é a possibilidade – a única – de uma nova Gênesis; é a Luz que resplandecia enquanto a voz criava; É a Luz que continua a resplendecer enquanto Deus continua a criar e re-criar o mundo, em cada coisa que nasce e fenece, em cada choro que se faz ouvir após as longas horas de dores e parto. É sempre Deus, amigo dos homens, Pai da eternidade, a continuar soprando sobre o barro caótico, dando-lhe vida, transformando a desforme matéria em forma santa, “imagem e semelhança” de sua perfeição.
O mundo carece sempre de um novo Princípio... e é do Presépio de Belém que ressoa – tímida,
tênue – a Voz recriadora. Um novo Gênesis é urgente. Novamente se ouve o ressoar ameaçador das anti-vozes – vozes que não geram vida, mas produzem trevas e morte: metralhadoras e canhões: guerra; fome, escravidão, indiferença, preconceitos e discriminações homicidas. O mundo sofre para continuar resplandecendo a glória original de seu Criador. O fim dos recursos naturais compromete a vida sobrea terra, representa o cessar das condições para a sobrevivência daqueles que foram criados para refletir a imagem e semelhança do Criador. O mundo –– com todos os seres que habitam as grandes águas, que rastejam sobre a terra e atingem as mais distantes alturas, este mundo é o grande presépio preparado por Deus para depositar o ser humano. O mesmo mundo que acolheu seu Filho – o Verbo-Voz – naquele humilde presépio, circundado por animais e pobres pastores, este mesmo mundo continua nos acolhendo, e se submetendo ao nosso domínio.
Mas esta é uma noite santa. É Natal. Novo Gênesis. Deus recomeça a recriar o mundo, mais uma vez. Que seja, então, uma noite feliz – a mais feliz de todas as noites –, apesar da dor de tantos irmãos; feliz, apesar da indiferença dos que não se comovem mais com o choro de uma criança; feliz, apesar das sombras da morte ainda ameaçar tantos povos e nações; feliz, apesar de tanta fome e tanto pão, tantas mesas fartas; feliz porque o Presépio de Belém ainda nos recorda que, no Princípio, a Voz divina criou a humanidade qual receptáculo e reflexo do imenso amor de seu coração. Feliz porque não é só uma Voz a falar: é a voz de um Pai, o Pai que ousamos chamar “Pai nosso”.
Dedico estas palavras a todos meus amigos e irmãos; especialmente por aqueles que o divino doador da vida decidiu – em sua imensa bondade e sabedoria – doar-lhes um outro tipo de vida, aquela que chamamos vida plena, por ser eterna. Que eles cantem no céu, junto com os anjos, o anúncio do Natal: “Glória a Deus nas alturas”.
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